Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: PROC/0000000208
  • Domínio: Práticas sociais, rituais e eventos festivos
  • Categoria: Festividades cíclicas
  • Denominação: Feira dos Santos de Cerdal
  • Outras denominações: Feira dos Galegos
  • Contexto tipológico: A centenária Feira dos Santos de Cerdal, única na sua tipologia em todo o Alto Minho, destaca-se no Noroeste Peninsular pela singularidade das suas caraterísticas: é uma feira/romaria de início do ciclo de inverno; está documentada, desde 1758, desenvolvendo-se, desde então, no mesmo local e espaço, apresentando poucas diferenças na sua tipologia de gestão; apresenta uma área de influência que ultrapassa largamente a NUTS II e abarca toda a Galiza; congrega um conjunto de patrimónios anexos, reconhecidos e valorizados tanto em Portugal como na Galiza.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Freguesia de Cerdal; Concelho de Valença; Concelhos Vizinhos; Paróquia de Cerdal
    Grupo(s): Município de Valença do Minho; Junta de Freguesia de Cerdal; Fábrica da Igreja da Paróquia de Cerdal
    Indivíduo(s): Pároco (Pe. Dr. Manuel Gonçalo Pereira do Vale); Sr. Manuel Pedrosa Pereira
  • Contexto territorial:
    Local: Lugar de Passos
    Freguesia: Cerdal
    Concelho: Valença
    Distrito: Viana do Castelo
    País: Portugal.
    NUTS: Portugal \ Continente \ Norte \ Minho-Lima
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Anual
    Data(s): 1 e 2 de novembro
  • Caracterização síntese:
    A Feira dos Santos é uma festividade cíclica e multicultural, cujas práticas sociais, rituais e eventos associados refletem as seculares e históricas relações luso-galaicas características do Alto Minho raiano. Esta Feira anual desenrola-se no Terreiro de São Bento, em Cerdal – Valença, impreterivelmente no dia 1 de novembro, estendendo-se pelo dia 2 do mesmo mês, dias em que a Igreja Católica celebra a Festa de Todos os Santos e o Dia de Fiéis Defuntos. Tradicionalmente, poderá acrescentar-se mais um dia, dependendo da sua posição no calendário – se se encontra, ou não, junto a um fim de semana. Por se realizar em dias tão importantes para a comunidade católica, por estar ligada à esfera da Igreja desde as suas origens e ao culto beneditino, a Feira é provida de missa (outrora com várias sessões), realizada bem cedo, acolhendo espiritualmente e dando as boas-vindas a todos os feirantes e visitantes. Os epítetos utilizados do outro lado da fronteira para designar a Feira dos Santos – “Feira dos Galegos” ou “Mãe de todas as Feiras” – demonstram também a força da feira no ideário cultural galego, atraindo milhares de galegos das quatro províncias da Comunidade Autónoma da Galiza (Pontevedra, Ourense, Lugo e Coruña). Portugueses e espanhóis reúnem-se numa Feira que, não tendo programação festiva, se desenrola num enorme convívio espontâneo ao ar livre de grande importância para a região. Com raízes que se perdem no tempo, surge como manifestação já devidamente consolidada em 1758 aquando das Memórias Paroquiais desse mesmo ano. Porém, investigações recentes parecem apontar para uma génese mais recuada, no século XVII, através de uma provisão do rei Filipe IV de Espanha em favor do Mosteiro de Ganfei que poderá estar ligada a esta manifestação. Conhecida além-fronteiras tanto pela qualidade como pela diversidade dos produtos disponibilizados (na qual se pode “comprar e vender um pouco de tudo”, como diz a gíria popular), tem nos “Perícos dos Santos” o seu produto âncora, e no Cavalo Garrano o elemento de destaque, esta que é uma das três raças equinas nacionais. A Feira dos Santos de Cerdal engloba em si mesma um amplo conjunto de costumes e tradições, de grande valor histórico e cultural, com enorme impacto direto e indireto na comunidade local e na região onde se insere.
  • Caracterização desenvolvida:
    Com sede na freguesia rural de Cerdal, a cerca de 7 km da sede de concelho, a Feira dos Santos de Cerdal encontra-se localizada entre dois eixos fundamentais que lhe caracterizaram e pautaram, desde sempre, as suas ações, crescimento e afirmação: O Alto Minho e a Galiza. Estes dois eixos possuem ligações históricas, culturais, sociais, económicas e políticas seculares, que nem a imposição de fronteiras e os regimes políticos conseguiram eliminar. Muitos autores, de um lado e de outro da fronteira, em diferentes épocas históricas, se debruçaram sobre estas relações, nomeadamente no território raiano. As influências de parte a parte são visíveis a olho nu, e deixam a descoberto características interrelacionais únicas e que marcam aspetos como a arquitetura, a arte, a gastronomia, os laços familiares e de amizade, a (con)vivência religiosa, e a cooperação interpessoal e institucional, que se reflete na forma como a Feira é vivida. A Feira dos Santos de Cerdal realiza-se impreterivelmente no dia 1 de novembro, estendendo-se pelo dia 2 do mesmo mês, dias em que a Igreja Católica celebra a Festa de Todos os Santos e o Dia de Fiéis Defuntos. Se estas datas se encontram encostadas a um fim de semana, poderá acoplar-se mais um dia – quando o dia 31 de outubro ocorre num domingo, a Câmara Municipal permite feira “antecipada”; quando o dia 3 de novembro coincide com um domingo, há feirantes que permanecem nesse dia. A questão das datas é pertinente, porque são elas que dão nome à Feira, atestam o seu propósito e justificam, por consequência, o facto de nos últimos 264 anos não ter sofrido alterações significativas. É precisamente por se fazer em dia de Todos os Santos que ela assumiu essa designação, e não por se enquadrar nas festividades da data ou se situar próxima da mesma como sucede noutros casos. A documentação mais antiga disponível para a sua datação, as Memórias Paroquiais de 1758, remetem-na para uma atividade já consolidada nessa época, sempre dentro da esfera da Igreja, com a mesma designação, no mesmo local, no mesmo espaço e com uma tipologia de gestão muito similar à atual, caraterísticas que se mantiveram durante séculos até à atualidade. No entanto, algumas fontes, e um Estudo mais recente e aprofundado, indicam-nos que esta se poderá remontar, muito provavelmente, ao Período Filipino, nomeadamente ao reinado de Filipe IV, e a uma possível ligação ao Mosteiro Beneditino de Ganfei. A Feira desenvolve-se em torno da Capela de S. Bento da Lagoa – templo de dimensões e caraterísticas humildes, mas relevantes do ponto de vista histórico e cultural – estendendo-se por todo o Terreiro de S. Bento, onde o sobreiral (que conta com vários exemplares centenários) recebe os feirantes vindos das mais distantes proveniências. É, por tradição, organizada pelo pároco da freguesia (atualmente, e desde inícios da década de 90, o Sr. Pe. Manuel Gonçalo Pereira do Vale) em colaboração com o seu ajudante de confiança (Sr. Manuel Pedrosa Pereira, que acompanha o pároco desde os seus inícios), contando com o apoio da Fábrica da Igreja da Paróquia da Cerdal, enquanto entidade contribuinte legalmente constituída para representação da Paróquia. Neste capítulo, cabe ao Padre a gestão de todo o processo referente à Feira dos Santos: No zelo pelo património imobiliário da paróquia, nomeadamente no relacionado com a Feira dos Santos; Na receção das solicitações dos feirantes para se instalarem na Feira, que normalmente sucede a partir do mês setembro, embora a grande maioria dos vendedores sejam já repetentes, muitos deles com lugares ocupados pela mesma família há várias gerações; Na organização da típica corrida de cavalos a “passo travado” (com cavaleiros oriundos dos dois lados da fronteira), embora as inscrições (gratuitas) possam ser efetuadas até ao início da prova (cerca das 14horas) na tarde do dia 1 de novembro. A corrida de cavalos, um dos momentos altos da Feira, faz parte do imaginário de miúdos e graúdos, sejam eles portugueses ou espanhóis. É um público que se habituou a ir à Feira, motivado por gerações passadas (pais e avôs), que tinham neste momento um espaço de extroversão e diversão, mas também de algum negócio. Os prémios atribuídos, simbólicos (que variam entre os 110€, para o primeiro classificado, e 40€ para o sétimo classificado, segundo os prémios atribuídos e presentes no cartaz da edição de 2022), são apensas um estímulo para todos os que se inscrevem. Tal como tudo o que ocorre na Feira, também a corrida de cavalos decorre de forma simples, “artesanal” e descomplicada. O regulamento está normalmente presente no cartaz da Feira, ficando visível para todos os entusiastas, curiosos e participantes, e consta de apenas seis pontos. Durante muitos anos a organização desta corrida foi auxiliada pelo Sr. Olímpio Marinho, valenciano, entusiasta dos cavalos, entretanto falecido (2022). Na primeira década de 2000, esta organização teve alguns contributos breves e externos, como o da Associação, Cultural dos Amigos do Cavalo de Passo Travado de Vila Verde (A.C.A.C.P.T.), conforme noticia o jornal o Valenciano de 5 de novembro de 2008 e o cartaz da Feira de 2010. Graças a eventos como a Feira dos Santos, o interesse pelo cavalo garrano não tem decrescido, funcionando como uma autentica montra tanto para o equinos como para os seus tratadores; Na comunicação às autoridades competentes das informações necessárias para certificar a qualidade e segurança da Feira e de todos os intervenientes na mesma; na marcação do recinto da Feira com gesso, ou similar – geralmente dois dias antes –, segundo os metros solicitados pelos feirantes (o preço dos lugares a disponibilizar é calculado X€/m2); No acompanhamento, assistência e colaboração dos feirantes e das entidades de segurança e proteção civil que se encontrem a fazer serviço no terreno; Na realização da missa de dia 1 de dezembro, às 6 horas de manhã, que acolhe todos os feirantes e visitantes que desejem participar. O horário tão madrugador, justifica-se pelos diferentes serviços religiosos que o pároco e organizador da Feira tem de realizar nesse dia nas diferentes paróquias de que é responsável. A missa matinal, que desde há várias décadas se resume a apenas uma celebração – ajustada ao número de fiéis que atualmente acorrem às intenções religiosas – chegou, em tempos, a ter quatro horários distintos (7h30, 9h30, 11h30: 12h30), como destacam algumas fontes, nomeadamente o jornal galego Xornal El Pueblo Gallego de 20 de outubro de 1967. As mudanças produzidas ao longo dos anos nos meios rurais a nível religioso, levou à existência de menos sacerdotes disponíveis para as mesmas paróquias. Esta situação inviabilizou, a longo prazo, a realização em duplicado destas celebrações, uma vez que os sacerdotes se têm que “desmultiplicar” pelas diferentes paroquias para os serviços religiosos, em especial para o Dia de Fiéis Defuntos. É uma missa simples (não dura mais que uma hora), sem grande pompa, mas que pretende servir de acolhimento fraterno e religioso a todos os que visitam a Feira numa das datas mais importantes do calendário católico; Na organização da “Feira das Trocas”, que tradicionalmente assim se apelida por ser possível ao comprador fazer a troca dos produtos adquiridos no dia anterior que não servem ou se acham com defeito. Realiza-se no dia 2 e, no fundo, é mais uma extensão do dia feira anterior. Este dia de feira é semelhante ao do dia 1 de novembro, embora sem missa e sem as típicas corridas de cavalos. A afluência ao segundo dia de feira varia consoante as condições climáticas e se esta se encontra, ou não, encostada a um fim de semana. Caso se encontre encostada a um fim de semana, as previsões são sempre de grande afluência de público, propiciando o negócio. Por outro lado, se o calendário não for favorável, a Feira das trocas fica fragilizada, principalmente devido às feiras nos concelhos vizinhos, dividindo o público e os feirantes (alguns já com lugar cativo) por elas. O papel central desenvolvido pelo pároco é complementado pelo auxílio prestado pelo seu ajudante. Cabe-lhe a este: Auxiliar o pároco na marcação do recinto feiral; A gestão dos m2 disponibilizados a cada feirante, conferindo a localização individual de cada um; A cobrança (em dia de feira) dos valores correspondentes aos espaços solicitados pelos feirantes; Vigilar ativamente para que o Terreiro de S. Bento se encontre nas melhores condições para o dia da Feira; Acompanhar a Feira, colaborando com o pároco nas tarefas e solicitações que sempre se suscitam nesses dias. À Fábrica da Igreja da Paróquia da Cerdal cabe a emissão de recibos e da documentação solicitada pelos feirantes ou entidades/instituições, bem como a contratação de populares da freguesia para o auxílio nas tarefas de limpeza do Terreiro em dia de Feira Anual. Em Dia de Feira Mensal, essa contratação fica a cargo da Junta de Freguesia de Cerdal. A contratação de populares, embora temporária, contribui ativamente para a melhoria das condições de vida de setores mais fragilizados da população de Cerdal, reforçando o sentimento de equidade social e de inserção na comunidade. As comissões de festas de São Bento (freguesia de Cerdal) e de São Pedro (freguesia de São Pedro da Torre), que possuem lugar cativo na Feira dos Santos há várias décadas com as suas tasquinhas, contribuem ativamente para renovação geracional naquilo que se apelida como o “ir à feira” ou o “participar na Feira”. Promovem de forma pessoal a Feira e a sua presença na mesma. Estas organizações compostas por voluntários de várias idades, que levantam as suas tasquinhas nestes dias, trabalham desinteressadamente para angariar receitas que posteriormente serão utilizadas para os arraiais e celebrações em honra dos santos patronos das suas localidades. Os feirantes, quer os da Feira Mensal, quer os da Feira Anual, são os verdadeiros motores da Feira. É a partir deles que a feira se faz. São eles que trazem, promovem e vendem os produtos. São eles que passam às novas gerações de feirantes a vontade em estar na Feira dos Santos e em vivenciá-la. São eles que divulgam os produtos portugueses e a gastronomia nacional. São eles que, com os seus produtos, modernizam a Feira, dando a conhecer aos visitantes as novas tendências e novidades do mercado. São eles que divulgam nos seus locais e distritos de residência o interesse pela Feira dos Santos. Atendendo aos registos dos últimos anos, os feirantes que participam na Feira dos Santos, são oriundos de cinco distritos nacionais (Aveiro, Braga, Porto, Viana do Castelo e Viseu), cerca de quarenta municípios portugueses e quatro província espanholas (Pontevedra, A Coruña, Ourense e Lugo), o que representa uma dispersão espacial bastante alargada quer em território português quer em território espanhol. A única “promoção” realizada pela organização é a criação de um cartaz anual da feira, muito singelo e que pouco tem variado ao longo do tempo. O Município de Valença e a Junta de Freguesia de Cerdal posicionam-se como parceiros estratégicos, mas sem intervenção direta, apenas destacando o evento nas suas páginas web. O restante “marketing” é realizado “boca-a-boca”, através das redes sociais e dos meios de comunicação regionais, portugueses e galegos, motivados pelo interesse natural que a Feira sempre provoca. Com efeito, a Feira dos Santos encontra-se elencada no Regulamento Municipal para as Feiras, mas com estatuto próprio, assim como acontece com a Feira Mensal. Do conjunto das feiras “dos Santos” realizadas em território nacional, a Feira dos Santos de Cerdal é, possivelmente, aquela que mais fielmente se tem mantido quanto à sua traça original, espaço, gestão e proposta, não se posicionando como um “produto turístico” no seu sentido mais restrito, mas como um património multicultural, transversal e partilhado. O enorme interesse que sempre suscitou a nível local, nos concelhos vizinhos e na Galiza, permitiu que se fosse afirmando como um evento de referência, marcando o calendário regional das grandes feiras minhotas e do norte de Portugal. Esse crescente interesse produziu um impacto significativo na imprensa regional, que, a partir dos primeiros exemplares publicados, e em data de Feira, sempre lhe prestaram uma atenção redobrada. É, pelo menos, desde meados do século XIX, uma feira eclética, vendendo não só o gado e os produtos agrícolas locais, que lhe deram a fama, mas também um conjunto mais alargado de bens, como parece fazer transparecer a referência mais antiga que encontramos à Feira dos Santos de Cerdal na imprensa regional – no jornal A Razão (Razão, 1857, p. 2), refere-se, por exemplo, a Selaria: «Os selleiros ainda venderam bem, pois houve tal que apurou 150$000 réis, pouco mais ou menos: e muito mais venderiam se o tempo estivesse bom.» Como grande feira romaria de início do ciclo de inverno, e exposta desde as suas origens às mudanças climáticas, típicas da época do ano em que decorre, sobreviveu inalteravelmente à tentação de uma mudança de calendário para outra época mais propícia. Esta caraterística de exposição à intempérie, é, desde meados do século XIX, permanentemente referenciada na imprensa, e faz parte da tradição dos Santos: Há Feira, faça chuva, faça sol! Também suscitou o interesse de escritores e investigadores como Francisco José Torres Sampaio, Júlio Alberto da Costa Evangelista (1927-2005), José Augusto Rosa de Araújo (1906-1992), José Augusto Vieira (1856-1890), que viram nas letras a melhor forma de expressar a inspiração produzida pela Feira dos Santos, deixando testemunhos e descrições de grande valor etnográfico, histórico e antropológico. Apesar da existência de outras feiras “dos Santos” em território galego, como a de Pontevedra y Monterroso, a “mãe de todas as feiras”, como a apelidou na sua edição de “Jueves, 1 de noviembre del 2007” o jornal corunhês, La Voz de Galicia, é o evento por excelência na Eurorregião Galiza-Norte de Portugal, recebendo de “braços abertos” portugueses e espanhóis em perfeita comunhão, numa tradição comum que os séculos não fizeram definhar. Um dos melhores exemplos da significância da Feira dos Santos para as duas regiões, pode ser observada num dos períodos da história ibérica mais complexa e repressiva, em que os dois países enfrentavam ditaduras (Franquismo e Estado Novo) – que coibiam os direitos dos seus cidadãos –, uma emigração em escala e, no caso português, uma Guerra Colonial que levava muitos dos seus jovens. A Feira dos Santos conseguiu, neste contexto tão delicado, o prodigioso feito de “levantar fronteiras”, sincronizar entidades, e proporcionar momentos de partilha conjunta, que em circunstâncias normais não aconteceriam Por exemplo, a correspondência expedida entre 1959 e 1975 pelo Município de Valença, facilmente consultável no Arquivo Municipal de Valença, expressa esse esforço conjunto em agilizar as dinâmicas de passagem na fronteira, e em sensibilizar todas as entidades para que não existissem contradições à hora de atravessar a ponte internacional. A mensagem era simples: facilidade de passagem para os dias de Feira dos Santos. Esta preocupação, não é, no entanto, exclusivo deste período – o comércio com o outro lado da fronteira, e a mobilidade entre as duas margens, sempre foi uma preocupação presente na política de fronteira dos monarcas dos dois lados. A importância económica e cultural da Feira dos Santos para portugueses e galegos, praticamente obrigava a que se tomassem medidas excecionais que pudessem fazer frente a uma “avalancha” de pessoas que se afunilavam às portas da ponte metálica centenária, e que, até Cerdal, chegaram a produzir quilómetros de filas de carros que inevitavelmente colapsavam as estradas N201 e N13, até à ponte internacional. A abertura definitiva das fronteiras, o Acordo e Convenção de Schengen, a nova ponte sobre o rio Minho – inaugurada oficialmente em 1993 (MIRANDA, 1993) – e o desaparecimento das moedas nacionais como o Escudo e a Peseta, trouxeram alterações significativas na relação com a Feira. Sem restrições de acesso, com mais uma via de passagem, e sem a necessidade de fazer o câmbio para as transações comerciais, o fluxo de galegos em Valença dilatou-se consideravelmente. Com eles, aumentaram também os pedidos para vender na Feira. Numa entrevista do jornal galego Faro de Vigo, datada de 31 de outubro 1997, enfatizava-se essa estreita ligação de pertença também ao povo galego: «Mañana sábado, se celebra en Valença do Minho la Feira dos Santos, un mercadillo popular que forma parte de la historia de las relaciones entre Galicia y Portugal. La celebración de la Feira dos Santos se pierde en la memoria del tiempo, las primeras referencias escritas datan del siglo XVII. Desde entonces esta tradición arraiga en el pueblo gallego que continua desplazándose todos los años a la parroquia de Cerdal, em Valença do Minho, para acudir a la última feria del año que en aquella época se celebraba en la región portuguesa del Miño. […]» (CARBAJALES, 1997, p. 12) Júlio Lima, que foi, durante largos anos, um dos responsáveis pela organização da Feira, era o entrevistado dessa notícia. Contava então, entre outras coisas, que «Antiguamente la gente venía de toda Galicia en carrozas tiradas por caballos y había campesinos que dejabam para esta ocasión un campo com buena hierba para segarla en estas fecha y luego venderla para comida de los animales» (CARBAJALES, 1997, p. 12). Em 2001, atingia-se o número de 630 vendedores/expositores registados e milhares de galegos em Cerdal. Os sucessivos melhoramentos realizados pela paróquia no Terreiro de S. Bento, permitiram um melhor acondicionamento dos feirantes, e uma circulação mais “arejada” e desimpedida dos visitantes. Por questões de segurança e de melhor usufruição de todos quantos visitam a Feira dos Santos, a organização limitou a lotação de vendedores para pouco mais de 400 lugares, os traços característicos da Feira prevaleceram inalterados, e o interesse do outro lado da fronteira também. Diríamos que os últimos 50 anos foram para a Feira dos Santos um período de crescimento da sua notoriedade e de consolidação como festividade cíclica de destaque no calendário dos dois países. O aparecimento e crescimento das redes sociais catapultou a Feira dos Santos para outros palcos outrora inimagináveis. A possibilidade de cada visitante registar individualmente, e sem filtros, a sua experiência na Feira fez crescer de forma notória os visitantes que querem também eles experienciar esta manifestação cultural. Para o reforço dessa posição de destaque muito contribuiu a reposição da Feira Mensal de Cerdal, realizada no mesmo local da anual. Historicamente tão antiga como a Feira dos Santos, a Feira Mensal assume uma dupla função interessante. Por um lado, “fideliza” o cliente e o interesse visitante em Cerdal, ainda que a dimensão da feira mensal seja mais reduzida que a da feira anual. Por outro lado, convida e prepara o visitante para a Feira Anual, como uma espécie de preview, em que se dá a conhecer parte do potencial da Feira dos Santos. As Memórias Paroquiais de 1758 fazem referência às duas feiras, dizendo-nos o padre relator que a feira mensal se realiza no dia 12 de cada mês. Tal como a Feira dos Santos, a Feira Mensal de Cerdal carece de estudos que nos permitam caracterizá-la na sua plenitude. Sabemos, sobre ela, que entre 1887 e 1917 ainda subsistia, chegando a ter frequência quinzenal (dias 12 e 23 de cada mês), mas, num dado momento histórico, parece ter caído em declínio. Na década de 80 do século XX houve, com o apoio dos párocos, Pe. Adelino Fernandes de Sousa e depois, Pe. Dr. Manuel Gonçalo Pereira do Vale, duas tentativas de reanimar a histórica feira mensal, embora sem sucesso. A década de noventa traz nova tentativa de regresso da feira mensal, mas, desta vez, com êxito. A organização passa para a responsabilidade da Junta de Freguesia de Cerdal, mediante acordo formal com a Paróquia de Cerdal.
  • Manifestações associadas:
    A Feira Anual dos Santos é “apenas” a parte mais apoteótica de um conjunto de outros patrimónios, tangíveis e intangíveis, que se congregam em várias tradições desenvolvidas ao longo do ano, verdadeiros elementos simbólicos da Cultura Popular Portuguesa. Elencamos, neste particular, a peculiar Capela de S. Bento da Lagoa (epicentro de todas a iniciativas), os Romeiros com as suas promessas, a Feira Mensal (que convida periodicamente os visitantes a Cerdal), a Feira do Cuco ou Feira dos Carneiros, as celebrações em honra de S. Brás e St.ª Luzia e Stª. Águeda, as Festas em honra de S. Bento da Lagoa, os Perícos dos Santos, o dia de “Trocas”, a Missa de dia 1 de novembro, a Feira de Gado, o “magusto” na feira, o Calão de Passos, o centenário sobreiral, as corridas de cavalos, onde o garrano tem especial destaque – em que o Terreiro de S. Bento é o polo aglutinador – e os Caminhos de Santiago que, nas últimas décadas, têm dado grande visibilidade à Capela de S. Bento. Património da Humanidade pela UNESCO, o Caminho de Santiago foi o primeiro Itinerário Cultural Europeu, reconhecido em 1987 pelo Conselho da Europa. O Caminho Português, como um dos mais característicos e importantes, tem observado um interesse e uma procura crescente por parte de viajantes, de agências de viagens, de empresas de animação, de municípios e entidades estatais. A proliferação de roteiros e guias de viagens, editados nas mais variadas línguas, numa espécie de reedições atualizadas e adaptadas do Livro V do Codex Calixtinus, tornaram possível a colocação da Capela de S. Bento da Lagoa nalguns mapas do Caminho. São manifestações que marcam a vivência coletiva do trabalho, da devoção, do ócio e de outras práticas sociais, que continuam a alimentar muitos aspetos da vida em comunidade que, caso contrário, já teriam desaparecido. Em verdade, a Feira dos Santos tem contribuído, a muito custo, para travar o desaparecimento de alguns elementos patrimoniais (naturais e culturais) associados, por, precisamente, terem lugar de destaque na Feira. Entre os mais ameaçados encontram-se: a) Perícos dos Santos – produto endógeno valenciano, estas pequenas peras tão peculiares, são o ex-libris da Feira que lhe dá o epíteto. Produzidos e colhidos nas zonas serranas do concelho, com base numa agricultura biológica, de subsistência e familiar, têm garantido a sua existência graças à sua presença e procura na Feira. Essa procura permitiu que, apesar da diminuição da população de periqueiros, fruto das mudanças sociais, culturais e económicas registadas nas últimas décadas no meio rural, as lavradeiras continuassem a garantir a presença deste produto histórico, que parece acompanhar a Feira desde os seus inícios. Recentemente, o município, através de um projeto de qualificação deste produto, tem tentado sensibilizar a comunidade para a importância da sua preservação e conservação como elemento importantíssimo para biodiversidade da floresta local, mas também pelo valor acrescentado no plano social, económico e gastronómico, que pode aportar. b) “Calão de Passos” – Um dos elementos menos falados, e menos conhecidos, da Feira dos Santos é o “Calão de Passos”. Diríamos que é uma espécie de língua “crioula” que, de forma híbrida e abreviada, junta várias expressões de origens muito distintas, criando um pequeno dialeto. A riqueza cultural e etnográfica deste dialeto encontra-se alicerçado nas origens históricas, muito curiosas, que lhe deram vida. A criação da Feira Mensal e da Feira dos Santos em Cerdal arrastou para esta localidade muitos feirantes, maioritariamente de várias partes do Minho (mas não só), que, com o tempo, se foram fixando atraídos pelas perspetivas de boas transações. De forma a tirar mais partido do negócio, e maior vantagem do cliente, foram aprimorando um dialeto próprio, impercetível ao cidadão comum (até para a grande maioria dos cerdalenses), que servia para várias missões: falar mal do cliente, chamar à atenção de um companheiro para alguma situação em particular sobre algo ou alguém, passar uma mensagem impercetível à população em geral… Abrange um leque muito variado de vocábulos com um grau significativo de originalidade. O “Calão de Passos” encontra-se atualmente em sério risco de extinção. Como a sua utilização tem associada uma carga familiar muito pronunciada, passando de geração em geração, e o número de pessoas que dominam o dialeto é limitado, uma boa parte com idades bastante avançadas, essa renovação não se está a fazer. Este raio muito apertado de conhecedores, circunscreve a quantidade de indivíduos capazes de transmitir às novas gerações os vocábulos, as expressões e as articulações necessárias para poderem verbalizar o dito “Calão”. Este património imaterial de grande riqueza enográfica e linguística, de que a Feira dos Santos é impulsionadora e fiel depositária – ainda que por interposta pessoa –, necessita de intervenção urgente para a sua salvaguarda, estudo e proteção. Os esforços estabelecidos até ao momento não conseguiram reverter o estado de iminente extinção, colocando em causa este património imaterial, parte significativa do que representa a Feira dos Santos para a comunidade local, mas também para a riqueza cultural da região. c) Sobreiral centenário – Em S. Bento da Lagoa, o sobreiral ainda se observa, com árvores centenárias e de grande porte (15 no total), continuando a fazer parte ativa da paisagem histórica, cultural e ambiental da Feira e do Terreiro de S. Bento. A plantação original de sobreiros neste local poderá estar ligada à construção da Capela, mantendo-se e renovando-se o sobreiral desde então. Para além do Terreiro de S. Bento, a existência de sobreiros de grande porte pode ainda ser observada nas imediações deste, no troço do Caminho de Santiago entre o Terreiro e o limite com a freguesia vizinha de Fontoura. Destacam-se ainda, pelos menos dois exemplares com cerca de 4m de perímetro de tronco, e mais de 6m de perímetro na base. Há poucos anos, devido à incidência de uma doença que se abateu sobre parte dos sobreiros, foram abatidos alguns exemplares e substituídos por outras árvores de menor relevância e impacto ambiental. d) Cavalo Garrano – As origens da Feira centram-se na comercialização de gado, principalmente bovino, caprino e cavalar. A comercialização de equinos, nomeadamente de garranos foi, desde sempre, uma das referências da Feira. São várias as alusões na imprensa regional, muitas ainda do século XIX, que confirmam o interesse tanto no comércio, como nas corridas de cavalos. O Garrano é uma das três raças nacionais (Garrano, Sorraia e Lusitano) e tem a sua origem no cavalo ibérico pré-histórico, que era característico das regiões montanhosas do Norte da Península Ibérica. As enormes mudanças registadas no meio rural, com a progressiva mecanização dos processos, a desertificação das aldeias e a ocupação de muitos solos, antes utilizados para a criação de gado em regime "semi-selvagem," tornaram muitas das funcionalidades de trabalho agrícola do cavalo “obsoletas” e colocaram em risco a subsistência da raça, embora classificada como espécie protegida. No entanto, a Feira dos Santos, através das suas corridas e mostra de exemplares permitiu, em conjunto com outros certames do género, continuar a manter o interesse na raça, estimulando a produção e incentivando a sua utilização para a prática desportiva. e) Feira do Cuco ou Feira dos Carneiros – Realizava-se normalmente no 21 de março, ou no domingo anterior, tinha a duração de 1 só dia, e sua realização estava ligada ao culto beneditino. Geralmente ocupava uma tarde ou manhã, promovendo a venda dos animais que estarão à mesa no dia da Festa da Páscoa – aludindo, de certa forma ao Agnus Dei, recordando a fragilidade da vida e os sacrifícios feitos a Deus, vindos dos tempos bíblicos, em agradecimento pelas suas mercês. As transformações sociais registadas nestas últimas décadas levaram a que esta tradição fosse interrompida, mas não esquecida. Assente em valores e aspetos como o altruísmo, a entreajuda, a devoção religiosa, e a partilha, a Feira do Cuco ou Feira dos Carneiros, contribuía para a manutenção dos modelos de agricultura e pecuária tradicionais, com práticas amigas do ambiente, que constituíram, em muitos casos, a base da economia de muitas famílias minhotas, mas igualmente para manter as ligações de proximidade e vizinhança essenciais para a vida da comunidade. Muitos desses animais eram transacionados no ano anterior, na Feira dos Santos, já com o destino de serem vendidos para a Feira dos Carneiros. A suspensão da Feira do Cuco em 1 de março de 1993, foi motivada pelo ressurgimento da Feira Mensal de Cerdal, em abril de 1992. A tradição beneditina da festa litúrgica da morte de S. Bento (21 de março), já, de si, encoberta pela invocação, fora de tempo, de St.ª Luzia e S. Brás, ficou esquecida.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: Por estar intimamente ligada à esfera da Igreja Católica, nomeadamente à ação do pároco local, à Fábrica da Igreja da Paróquia de Cerdal, e a tradições de matriz religiosa, a transmissão de saberes, usos e costumes ao responsável seguinte (novo pároco) poderá ser realizada de forma direta ou indireta. Diretamente, quando a transmissão é feita de pároco para pároco, havendo uma transição consolidada dos conhecimentos entre aquele que sai e aquele que entra para a posição de responsável pela gestão religiosa da Paróquia. Porém, nem sempre esta circunstância se observa, principalmente em situações em que a substituição do pároco é motivada pelo falecimento. Indiretamente, quando a transmissão direta não se torna possível ou viável. Cabe à Fábrica da Igreja da Paróquia de Cerdal, nesta situação, a transmissão dos conhecimentos para o novo pároco. Poderíamos também aqui incluir o papel da comunidade e dos feirantes, especialmente os mais antigos, que, através da prática, contribuem para o espírito da Feira, partilhando as suas experiências e vivências, mantendo vivo o sentimento da manifestação. Nestes processos de transição e de transmissão de conhecimentos desenvolvem particular importância os homens de confiança que normalmente auxiliam o pároco na organização e gestão da Feira. Destacamos o Sr. Júlio Lima, natural da Freguesia de Cerdal, e que durante décadas auxiliou o antigo pároco local, Pe. Constantino António Fernandes, registando as receitas e despesas desde 1964 a 1977. Até 1987, durante o trabalho paroquial do Pe. Adelino Fernandes de Sousa (1977-1983), e nos primeiros anos do atual pároco, serviram a Comissão de Festas, em equipas sucessivas, doze pessoas. A partir de 1988, até 2019, a Feira dos Santos foi organizada pelo pároco com a preciosa colaboração do Sr. Manuel Pedrosa Pereira, natural da Freguesia de Fontoura e residente no Lugar de Passos, junto do Terreiro de S. Bento. Por não existir um protocolo, regulamento ou linha orientadora pré-definida/estabelecida e escrita, para a organização da Feira, esta encontra-se totalmente exposta ao bom senso do pároco e da sua sensibilidade em respeitar os pressupostos que caracterizam histórica e culturalmente a Feira dos Santos. A gestão é realizada de forma “simples”, sem recurso às novas tecnologias, sem plano definido em esquema (embora se tenha tentado executar, em alguns momentos, uma planta da Feira), assentando na oralidade, em registos lavrados manualmente, e na confiança construída com os diferentes agentes envolvidos – vendedores, pároco, Fábrica da Igreja – (numa espécie de código de conduta não escrito), fruto de décadas de convivência participada. Estas particularidades colocam em causa a transmissão de alguns conhecimentos e informações, nomeadamente para as novas gerações – cuja ligação aos meios digitais e à informatização é fundamental para a assimilação de processos –, e tornam perecíveis as documentações produzidas, visto que estas, por serem manuais e particulares, nem sempre transitam no todo ou em parte para as gerações seguintes.
    Data: 2021-11-01
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: A transmissão da Feira dos Santos de Cerdal é realizada pelo Pároco da freguesia, a Fábrica da Igreja da Paróquia de Cerdal, a Comunidade local, os visitantes, e a população do Alto Minho e da Galiza
  • Origem / Historial:
    A Feira dos Santos de Cerdal é, no universo das “Feiras dos Santos” nacionais e internacionais, uma das mais significativas e representativas da sua espécie. Estas feiras “dos Santos” têm como denominador comum, no seu início, o comércio de gado (principalmente equino e bovino) e de produtos agrícolas, que durante séculos se assumiram como vitais na economia local e familiar das comunidades. A evolução das feiras, dos comércios e da própria sociedade ditou que se fossem adaptando às realidades próprias de cada época. O “sucesso” da Feira dos Santos de Cerdal reside nessa sua “rusticidade” genuína e nesse legado de gerações que, partilhando experiências e sensações, posicionaram a Feira num lugar especial do calendário nacional e galego. Histórica, cultural e antropologicamente, representou uma importante válvula de escape para as populações que, nos últimos momentos antes das agruras e introversões do inverno, aproveitavam para gastar as derradeiras “doses de extroversão” do ano. A Feira atrai pela sua simplicidade e variedade, vendendo não só o gado e os produtos agrícolas locais, mas também um conjunto mais alargado de bens – pelo menos desde meados do século XIX, conforme surge documentado em alguns jornais de época. Nela não existem patrocínios de grandes firmas comerciais, nem tampouco se produz animação externa para atrair público, clientes e turistas. Não é uma feira gastronómica, embora as tasquinhas que nela podemos encontrar representem o melhor que a nossa gastronomia tradicional portuguesa tem para oferecer. Também não é uma feira-mostra, apesar de nela se mostrar o que de melhor e mais típico se faz no país. Os visitantes chegam de manhã bem cedo ao Terreiro de S. Bento, local onde a Feira dos Santos sempre se realizou desde, pelo menos, 1758. Oriundos das mais diversas paragens (algumas bem distantes), vêm “convidados” pelos pregões das centenas de vendedores que ocupam as várias artérias do Terreiro, pela generosidade do cheiro das castanhas assadas e das barracas de “comes e bebes” que, desde a primeira hora, servem um “pica-pau” aos mais corajosos madrugadores, e pela azáfama que progressivamente se vai instalando. O frenesim da Feira dos Santos irradia a partir da Capela de S. Bento da Lagoa, templo de características humildes (construído provavelmente no século XVI ou na transição para o XVII), mas que é o coração de toda a atividade. Em seu redor, as inevitáveis lavradeiras de Cerdal e de freguesias vizinhas, que, com a paciência típica de quem colhe o que a terra dá, expõem o seu produto caseiro, biológico e local. Nas cestas e gamelas destas mulheres, muitas cumprindo uma tradição já familiar, encontram-se os famosos e típicos “Perícos dos Santos” (produto endógeno valenciano), e os frutos secos específicos da época. Não faltam, também os dióspiros, as maçãs tardias, os produtos hortícolas, os coelhos, as aves de capoeira, e de tudo um pouco do que se produz em casa. Se o entorno da Capela é das lavradeiras, o espaço que circunda a “pista” para as corridas de cavalos, abraça todo o tipo de negócios ligados ao meio rural: venda de gado cavalar – onde o garrano é rei –, muar, bovino , ovino, caprino , de capoeira, e suíno; venda de arreios e selaria; venda de roupa e calçado ligado ao trabalho na terra; venda de sementes e utensílios de lavoura (croças, enxadas, engaços, sachos, foices, navalhas de poda, tesouras de tosquia e de corte, entre outros); venda de maquinaria agrícola (tratores; alfaias: fresas, charruas, grades, abre-valas, etc.); venda de árvores de pomar, de plantas e de tudo um pouco relacionado com a agricultura e a jardinagem. Não falta o calçado, o vestuário e os atoalhados made in Portugal, muito apreciados pela sua qualidade e originalidade, principalmente pelo cliente galego, que tradicionalmente gosta de “sentir” na sua mão o produto e de o regatear com o vendedor. A esta lista de produtos e vendedores, juntam-se os vendedores de “fumeiro e “mercearia tradicional”, os vendedores de pão e doces da região, os vendedores de louças, cerâmicas, cutelarias, mobiliário, artesanato e ornamentos, também eles de produção portuguesa, que compõe o ramalhete da oferta disponibilizada pela Feira. As tradicionais “Trocas”, que ocorrem no dia 2 de novembro, para trocar todo aquele produto que não serviu, e as “desgarradas” de cantadores e concertinas, tipicamente minhotas, que animam de forma espontânea as tasquinhas pela parte da noite, são fragmentos integrantes e fundamentais do portfolio da Feira dos Santos, e que não encontram similitudes noutras feiras. Ao longo do ano, um conjunto amplo de atividades e celebrações, que decorrem no mesmo Terreiro e Capela de S. Bento da Lagoa, contribui para “alimentar” a ida à Feira dos Santos, como se se tratasse de um ritual escrupuloso a seguir, não faltando participantes de concelhos limítrofes e da vizinha Galiza. Foram vários os autores que dedicaram algumas linhas dos seus trabalhos à Feira dos Santos. Contudo, apesar de toda esta riqueza cultural e etnográfica, nunca foram produzidos estudos ou dissertações específicas sobre a Feira, circunstância que tem influenciado negativamente na conservação e valorização de muitos dos aspetos que a rodeiam. Mesmo entre os indivíduos encarregues de organizar e gerir a Feira, existe um hiato notório de informação sobre as suas origens, que colocam em causa a subsistência e legado da Feira dos Santos para as gerações futuras, como elemento único e diferenciador do património cultural imaterial português. Assim, consideram-se os preciosos contributos avulsos de autores como Alíria Filomena Pinto Lopes Martins Riba Nobre, Américo Lopes de Oliveira, Pe. António Carvalho da Costa, Bento Pinto da Silva, Francisco José Torres Sampaio, J. Maques Rocha, José Augusto Rosa de Araújo, José Augusto Vieira, José Carlos Ferreira, Júlio Alberto da Costa Evangelista, Major Alberto Pereira de Castro, Manuel Augusto Antunes Pinto Neves, Pe. Manuel de Jesus Soares, entre outros, que permitiram manter vivo o interesse etnográfico sobre a Feira. O desejo de incluir a Feira dos Santos no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial, veio reforçar a necessidade de estudar, compreender, proteger e salvaguardar a Feira no seu todo (incluindo o património anexo e as manifestações associadas). Nesse sentido, foi elaborado um estudo – “Estudo. Feira dos Santos de Cerdal. 2020/20201” – que decorreu entre maio de 2020 e maio de 2021, que permitiu trazer a descoberto novas informações sobre a Feira dos Santos e apresentar uma nova tese sobre as suas possíveis origens. Do estudo da autoria do historiador valenciano Narciso Luís Esteves Serra, foi possível assinalar a provável ligação da Feira dos Santos, da Capela de S. Bento da Lagoa e do culto de S. Bento em Cerdal ao Mosteiro Beneditino de Ganfei, que durante séculos exerceu direitos de padroado na Paróquia de St.ª Eulália de Cerdal. Foi ainda “redescoberta” uma imagem de roca de S. Bento, existente na Igreja Paroquial de St.ª Eulália de Cerdal, que, segundo o mesmo estudo, teria provavelmente como função, a sua utilização nas procissões em honra de S. Bento em dias festivos entre a Igreja Paroquial e a Capela de S. Bento da Lagoa. Contudo, trata-se de uma imagem rara, mesmo no contexto nacional, como se pode observar na monografia “Sanctus Benedictus – São Bentinho”, trabalho desenvolvido no âmbito da operação integrada de recuperação do Mosteiro de S. Martinho de Tibães, onde se incluíram conferências e exposições sobre a temática beneditina. A análise feita a duas provisões retiradas de um manuscrito datado de 1796, da autoria de Frei Antonio da Asumsão Meireles, no capítulo “Privilegios Concedidos ao Mosteiro de Ganfey Pelos Senhores Reis deste Reino. Memoria” (MEIRELES, 1796), parecem contribuir para a hipótese da possível ligação da Feira dos Santos ao referido Mosteiro de Ganfei. Na primeira provisão, datada de 1631, por Filipe III (Filipe IV de Espanha), dá-se o aval para que o Mosteiro usufrua de açougue próprio, vantagens de preço na negociação com o “carniceiro” (face ao preço praticado na Vila de Valença), autorizando ainda a venda ao povo dos sobrantes. Na segunda provisão, um documento de D. João V, datado de 1726, permite ao Mosteiro vender para fora do termo uma parte da sua produção, sem restrições de local para a sua venda. À data das Memórias Paroquiais de 1758 (CAPELA, Valença Nas Memórias Paroquiais de 1758, 2003), e tendo por base os dados dos redatores, em Valença só se fazia feira em três locais, embora a vontade fosse para que se fizesse em mais, como expressa o abade de S. Julião da Silva («Não tem feira mas no monte de São Sebastião da Inculla lugar, muito accomodado para a haver e seria muito útil ao bem comum.» p.143): em Valença, a 5 de cada mês – que se realiza dentro do seu Termo; em Sanfins, a 26 de cada mês – dentro dos limites do Couto do Mosteiro de Sanfins ; em Cerdal – também dentro do Termo de Valença, que conta com duas feiras, uma todos os meses, no dia 12 , outra em dia de Todos os Santos . Verificando as anotações das Memórias sobre a freguesia de Ganfei (CAPELA, Valença Nas Memórias Paroquiais de 1758, 2003, pp. 122-126), observa-se que não existe qualquer indicação de feira, mercado ou algo de semelhante naquele território, apesar das disposições régias acima indicadas. Esta realidade, segundo o estudo, levanta a hipótese de que a escolha de Cerdal poderá estar relacionada com motivações estratégicas do próprio Mosteiro, visto que se trata de uma localidade bem situada geograficamente e com caraterísticas bastante peculiares: 1. junto a uma das principais vias de acesso (antiga Via Romana XIX), onde confluem facilmente pessoas e bens de várias origens (e que passa perto do Mosteiro); 2. nos limites do Termo, para sul, servindo uma comunidade mais distante do concelho e bastante empobrecida – e que a norte já se encontrava “coberta” pelo Couto de Sanfins; 3. distante o suficiente para não colidir com a feira principal do concelho, no dia 5, e com a do Mosteiro de Sanfins, no dia 26 – e aproveitando a data de saída da provisão de 1631, dia 12, para situá-la entre as duas feiras já mencionadas; 4. e que a importância da Feira deveria ser tal, e tão arraigada, que se repartia em dois momentos distintos, a mensal e a anual – o que parece indicar que teria usufruído do tempo necessário para se enraizar na comunidade local. Tendo em consideração a data de 1631, em 1758 a Feira desfrutaria, à época, de 127 anos de atividade. Dando-se, neste caso, uma “convergência” entre o facto histórico e a tradição popular que a liga ao tempo dos “Filipes”. Para além do centenário sobreiral existente no Terreiro de S. Bento, tradicionalmente associado ao Período Filipino, e de um altar na Capela de S. Bento da Lagoa, encimado pelas armas dos “Mendes de Tanger”, que os populares sempre atribuíram ao mesmo período histórico, é necessário referenciar as Guerras da Restauração que em Valença tiveram grande expressão, nomeadamente em Cerdal e no Lugar de Passos. Ao nível da história recente, principalmente desde 1857 – data em que se tem o primeiro registo jornalístico conhecido relativo à Feira (Jornal A Razão, de dia 4 de novembro de 1857), podemos afirmar que imprensa é o maior e mais rico fornecedor de informações sobre esta manifestação. Neste particular, incluiríamos também a imprensa espanhola, nomeadamente, galega, que ano após ano incluem nas suas edições seja os anúncios de excursões à Feira dos Santos, seja informações sobre como decorreu o evento. É graças às informações contidas nestas publicações periódicas que podemos perceber a dimensão social, económica e até política da Feira, dependendo da génese do jornal consultado. Este facto é tão ou mais visível no período circundante à Primeira República, com vários jornais de cariz revolucionário e anticlerical. Os mais recentes epítetos, como “a mãe de todas as feiras”, que surge pela primeira vez referenciada a 1 de novembro de 2007, na Crónica (página L9), do La Voz de Galícia, mostram bem a confluência reiterada de portugueses e espanhóis em Cerdal, no dia de Todo os Santos. Conforme indica Narciso Serra no seu Estudo (SERRA N. , 2020/2021, p. 133), Nos jornais locais de finais do século XIX e inícios do século XX, era normal a existência de uma rúbrica denominada “chegadas e partidas”, onde se dava a conhecer à comunidade as “chegadas” e “partidas”, via caminhos-de-ferro, de personalidades relevantes da sociedade local. Numa época em que viajar não era um ato corriqueiro, jornais e personalidades não se coibiam de publicar as viagens efetuadas, numa espécie de afirmação do status social. A Feira dos Santos, como grande acontecimento anual, surge várias vezes referenciada nesta rúbrica, como se pode observar, por exemplo, no jornal “A Voz de Cerveira de 1916” (A VOZ DE CERVEIRA, 1916, p. 3) A riqueza maior destas publicações periódicas reside nomeadamente nas entrevistas diretas feitas a feirante e frequentadores da Feira, questionando-os sobre a quantidade das transações efetuadas, mas também sobre as condições do Terreiro de S. Bento e dos espaços envolventes. Funcionando como catalisadores de melhorias, impondo sentido crítico – como aconteceu no ano de 2012, aquando da última Feira antes do feriado ser suspenso, mas em que a população manifestou a vontade em continuar com a mesma data, em vez de passar a Feira para um fim de semana (como noticia, por exemplo o jornal Alto Minho, de 6 de novembro de 2021) – e pressionando a organização para encetar a cada ano melhoramentos evidentes. As melhorias registadas nas últimas décadas, nomeadamente nas acessibilidade e acomodação na Feira, são também elas fruto do eco que a comunicação social vai dando ao evento, muito para além das fronteiras do concelho de Valença. Assim foi com os arruamentos alcatroados, para evitar as possas de água e os caminhos enlameados que não conferiam dignidade à manifestação nem aos seus frequentadores, com a cerca metálica para a pista de corrida de cavalos (hoje simbolicamente com o nome do Sr. Olímpio Fernandes Marinho, segundo uma placa desterrada na Feira de 2022), conferindo maior segurança, visibilidade e respeitabilidade a um dos momentos mais importantes da Feira, ou ainda com a construção de sanitários mais atualizados e eficientes atendendo às necessidades atuais. A fixação definitiva, na década de 90, da Feira Mensal veio também beneficiar a Feira Anual, uma vez que o Terreiro de S. Bento passa a ter maior uso e visibilidade, usufruindo do espaço aberto pela comunicação social, que inclui nos seus destaques a feira do mês. A massificação das redes sociais e a melhoria generalizada dos transportes e acessibilidades, permitiu fazer chegar Feira a públicos cada vez mais distantes, seduzindo e renovando os visitantes e os feirantes. Entrevistas recentes, realizadas durante a Feira de 2022, junto do público e de comerciantes, revelaram o apreço pelo esforço feito pela organização em dotar o recinto de maiores e melhores condições de acomodação, não apontando sugestões de melhoria relevantes, demonstrando uma compreensão do público pelas caraterísticas tradicionais e peculiares da Feira e pela sua importância para a região.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Direito ColetivoGarantem anualmente a realização da Feira. Fábrica da Igreja da Paróquia de Cerdal
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Isilda Manuela Vilela Martins Salvador
    Função: Técnico Superior de Museologia
    Data: 2022-08-02
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Secretário de Estado da Cultura Direção-Geral do Património Cultural
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