Ficha de Património Imaterial

  • N.º de inventário: INPCI_2023_014
  • Domínio: Competências no âmbito de processos e técnicas tradicionais
  • Categoria: Atividades transformadoras
  • Denominação: Produção de Vinho de Talha
  • Outras denominações: Vinho de Talha; Vinho Novo; Vinho de Amigo; Vinho dos Potes; Vinho de Favor; Vinho do Tareco
  • Contexto tipológico: A produção do vinho em talhas de barro e o processo de vinificação representam uma herança cultural de enorme singularidade, presente em muitas comunidades vinhateiras do Alentejo. Este processo de vinificação natural remonta à época romana e caracteriza-se pela utilização de talhas de barro como recipiente de vinificação. Depois de esmagadas e parcialmente desengaçadas, com recurso ao moinho ou numa mesa de ripanço, as uvas transformam-se no mosto que se deposita em talhas de barro para fermentação e cozedura, por um período aproximado de 40 dias, até o vinho ficar pronto a ser bebido. Esta produção, sobretudo da responsabilidade dos homens, resistiu sustentada na transmissão oral, num saber-fazer experimentado, na partilha do conhecimento de geração em geração, em respeito por tradições antigas e milenares. Este saber-fazer permitiu, ainda, preservar as adegas de construção tradicional, as talhas de barro, os recipientes, os utensílios e os processos culturais que, atualmente, se constituem como património cultural e identitário das comunidades onde a tradição de produzir vinho de talha se mantém.
  • Contexto social:
    Comunidade(s): Produtores de Vinho de Talha
  • Contexto territorial:
    Local: Vários concelhos da Região do Alentejo
    NUTS: Portugal \ Continente \ Alentejo
  • Contexto temporal:
    Periodicidade: Anual
    Data(s): A produção dos vinhos ocorre a partir de meados de agosto até meados de novembro
  • Caracterização síntese:
    No Alentejo região vinícola onde atualmente se produzem cerca de 106 milhões de litros de vinho por ano por processos de tecnologia moderna, os vinhos de talha têm resistido à ameaça de extinção. O despertar para retomar as técnicas tradicionais na confeção de alimentos e bebidas veio permitir a redescoberta do vinho de talha como um produto natural, diferenciador, representativo de um saber-fazer antigo e de uma tradição que perdura na região pelo menos desde a época romana. Esta forma de vinificação e as práticas comunitárias que lhe estão associadas, começam nos últimos anos a ganhar maior expressão. O vinho de talha, vinho do pote, vinho do tareco (pequeno pote) é a designação dada ao vinho que resulta dos mostos fermentados e “cozidos” em vasilhas de barro. A produção anual dos vinhos tem início a partir de meados de agosto, com as vindimas e, termina no final de novembro, quando as massas se depositam no fundo das talhas. Nas vinhas, em regra de pequena dimensão, com diversas castas plantadas, as uvas são escolhidas e vindimadas durante a manhã, pela fresca, donde, são encaminhadas para as adegas. Nas adegas, tradicionais ou espaços adaptados para servir esta função, estão as talhas e os potes (recipientes de barro com capacidade entre 300 e 2000 litros) e os utensílios vinários (moinho, mangueiras, canecos, escadotes ou burras, rodos etc), previamente lavados, desinfetados e preparados para receber as uvas a transformar em mosto. Aqui as uvas são esmagadas e parcialmente desengaçadas com recurso ao moinho ou às mesas de ripanço. Desta operação resultam os mostos que incluem sumo, películas, grainhas e alguns engaços, são transferidos, com as mangueiras ou com os canecos, para dentro das talhas onde se dá a fermentação. Terminada esta parte do processo, o adegueiro ou a pessoa responsável pela produção do vinho, durante as primeiras duas semanas e enquanto ocorre a fermentação, tem a responsabilidade de fazer a remontagem das massas (mexer empurrando as massas de cima para baixo dentro da talha) pelo menos duas vezes por dia. Terminada a fermentação e, até perfazer, mais ou menos, quarenta dias de “cozedura” completa, faz-se o acompanhamento, para garantir que os vinhos estão a evoluir, se estão equilibrados (nem muito doces, nem muito alcoólicos), se não azedam, se têm qualidade, sabor e cor adequados. Com o vinho pronto são abertas as talhas mais ou menos por altura do S. Martinho. A abertura é feita com a colocação de uma torneira num orifício que a talha tem perto da base, um pouco abaixo do local onde os engaços e as películas se depositam. As massas (engaços, películas, grainhas) que ficam no fundo da talha, terminada a fermentação, servem de filtro natural, ou seja, o vinho ao sair pela torneira, atravessa estas massas, onde deixa os resíduos. Com a abertura das talhas chega a altura do produtor dar a conhecer os vinhos. Têm então, início as provas e o convívio à volta dos vinhos novos. Na comunidade os grupos organizam-se e percorrem as adegas cantando, petiscando, provando o vinho, comentando qual é o melhor… É o convívio, a partilha e alguma rivalidade entre produtores sobre qual terá o melhor vinho. Todos os anos este ciclo se repete, as comunidades voltam às técnicas tradicionais e aos hábitos de convívio tão antigos como o próprio “saber-fazer”.
  • Caracterização desenvolvida:
    A produção dos vinhos de talha na Vidigueira, intimamente ligado à tradição vitivinícola do concelho, assumem-se como uma prática de natureza pré-industrial, integrada no conjunto dos saberes tradicionais de processos de transformação de recursos vitícolas característicos das comunidades vinhateiras. Este método de produção de vinho responde a uma geografia histórica e cultural que, até meados do século XX, envolvia todo o Alentejo. Nestes locais, para fazerem os vinhos de talha, é prática comum a todos os produtores escolher as uvas na vinha, vindimar, transportar para a adega, esmagar e desengaçar, colocar os mostos nas talhas, acompanhar a fermentação e a “cozedura” do vinho por um período, mais ou menos, de 40 dias até ficar pronto para se abrir a talha e consumir. O grupo mantém ainda, em comum, o “saber-fazer” e a experiência, requisitos determinantes para o sucesso do processo, pois, para se fazer o vinho de talha, não há medidas exatas nem meios científicos de controlo dos vinhos, ao contrário do que acontece com os vinhos modernos. As talhas são todas diferentes. Além disso, com a mesma capacidade e o mesmo método geram vinhos diferentes. As temperaturas dentro da adega são influenciadas por fatores meteorológicos externos e pela estrutura do edifício. Só pela experiência, os adegueiros sabem o que fazer, consoante o comportamento dos mostos nas talhas, quer seja na fermentação, no afinar do vinho de forma que não fique nem muito doce nem muito alcoólico, ou ainda, para que fique límpido e não azede. Ainda assim, por se tratar de um produto natural, o resultado não é previsível tal como diz o senhor José Jeremias de Vila Alva: “O vinho da talha não é previsão, … é espectativa!”. Para além do método de produção, há particularidades comuns, que contribuem para justificar a continuidade da produção dos vinhos de talha nestes locais, nomeadamente: condições edafoclimáticas propícias ao cultivo da vinha; a divisão da propriedade em pequenas parcelas; existência de adegas de construção tradicional; talhas de barro e utensílios vinários duráveis e de fácil manutenção; motivação para produzir um pouco de azeite, de vinho e de pão, como contributo para a economia familiar; a interioridade dos territórios que reforça o apego às tradições; a vontade de fazer para consumo próprio e, nalguns casos, também para “dispensar” (vender) na comunidade; para partilhar com familiares e amigos nos convívios em comunidade. No Alentejo, até meados do século passado, para além das motivações associadas às práticas comunitárias rurais, a produção tinha objetivos comerciais. A forma mais corrente de fazer os vinhos era nas talhas. O vinho era vendido nas adegas, nas tabernas, nas comunidades e, nalguns centros vinhateiros com maior produção e vinhos mais famosos, para outras localidades e regiões fora do concelho, como era o caso da Vidigueira. A modernização da agricultura e a criação das adegas cooperativas contribuíram para a diminuição da produção do vinho de talha. Subsistiu pelas razões invocadas, e tem vindo a despertar interesse pelo retomar de tradições antigas e objetivos económicos, relacionados com o património e o enoturismo, mas, ainda assim na maior parte, continua muito assente na vontade de quem sabe fazer. No grupo de produtores, identificado em 2018-2019, verificou-se que mantêm os mesmos objetivos para o vinho produzido: autoconsumo, venda na comunidade, partilha com familiares e amigos. No inquérito todos responderam que continuam a fazer o vinho “pelo gosto e amor ao vinho de talha”, “pela perpetuação das tradições” e que “não pretendem abandonar o vinho de talha”. Quanto à regularidade da produção, a maioria, com exceção de quem tem objetivos comerciais, assume que não é certo que todos os anos faça vinho, pois a produção pode variar muito de ano para ano. Trata-se de uma “arte” que fica muito dependente das condições do ano agrícola, da possibilidade de conjugar a atividade profissional com a feitura dos vinhos pois, em muitos casos, quem sabe fazer os vinhos tem outras profissões ou está aposentado (a maioria dos produtores tem entre 50-80 anos de idade), ou ainda, e acima de tudo, da vontade de fazer, ou não, os vinhos em cada ano. No caso da Vidigueira a cultura da vinha sempre assumiu um papel muito importante. As condições edafoclimáticas, a divisão da terra em pequenas parcelas, sobretudo junto à linha da serra de Portel, permitiram o cultivo da vinha pelo menos desde a época romana. A cultura da vinha e a produção do vinho sempre foram e, continuam a ser, referências deste território, como atividades com grande expressão económica no concelho. A produção do vinho de talha permanece na memória coletiva destas comunidades, segundo as quais sempre se produziu desta forma, não havendo memória de que se tenha interrompido ou não se tenha praticado. Nestas comunidades as motivações para fazer vinhos de talha são comuns aos outros territórios alentejanos, mas, com número mais expressivo de produtores, justificada por práticas vitícolas permanentes pelo menos com 2000 anos. Embora a produção se tenha reduzido, tal como noutras zonas do Alentejo, nunca foi interrompida. No final da década de 90 do século passado havia apenas cinco produtores identificados. No entanto, por incentivo da Associação de Desenvolvimento Local Vitifrades, criada para promover a produção do vinho de talha, o número de produtores voltou a aumentar. No inquérito de 2018-2019 foram identificados no concelho de Vidigueira cerca de 64 produtores. O grupo constituído maioritariamente por homens, com apenas 3 mulheres, com idades compreendidas entre os 20-80 anos, continua a produzir o vinho de talha pelo método antigo. Contudo, para assegurar a produção é necessário, o “saber-fazer”, mas, também, reunir um conjunto de condições: vinha, ou onde comprar uva; adega; talhas e utensílios vinários. Vinha Em relação à vinha que, no concelho da Vidigueira ocupa uma área de cerca de 2.380 hectares, com grandes parcelas na parte sul do concelho, constata-se que a maior parte da produção do vinho de talha é sustentada pelas pequenas vinhas, existentes sobretudo nas freguesias de Vidigueira e Vila de Frades. São pequenas parcelas com dimensões entre os 0,25 - 2,5 hectares, regimes de plantação mais antigos, vinhas velhas com mistura de castas. Apenas uma pequena parte do vinho de talha, é feito da uva das vinhas mais novas, sobretudo nas adegas mais modernas que começaram a interessar-se pelo vinho da talha. Algumas já estão a produzir pelo mesmo método, motivadas pelo retomar das tradições, mas sobretudo com objetivos comercias, em resposta à procura que estes vinhos começam a ter na comunidade e fora dela. Um outro aspeto a ter em conta na produção dos vinhos são as castas. Nos vinhos de talha não há propriamente castas definidas para o fazer. Mais importante do que a casta é a intenção, a vontade, o saber fazer vinho e a possibilidade de selecionar uma porção de uva, de boa qualidade, sã, com bom grau de maturação, que permita encher as talhas para fazer os vinhos, brancos, tinto ou “petroleiros” (palhetes com mistura de uvas brancas e tintas). Na Vidigueira as mais usadas são: Aragonês, Trincadeira, Tinta Grossa, Periquita, Alfroncheiro, Roupeiro, Antão Vaz, Perrum, Fernão Pires, Manteúdo, Diagalves, Larião, Dedo de Dama. As adegas As adegas assumem um papel importante em todo o processo, com dupla função de locais de laboração e de convívio, incluídos nos hábitos comunitários. Como diz Norberto Fialho “A talha não faz o vinho sozinha e o homem não usa só a talha para fazer o vinho”. Na adega o tipo de construção, a distribuição dos espaços, a climatização, influenciam todo o processo de produção e conservação do vinho de talha. Enquanto nas adegas modernas encontramos tecnologia de ponta desde a receção da uva até ao engarrafamento dos vinhos, espaços diferenciados para cada fase do processo, climatização e todos os meios de controlo de qualidade para que os vinhos tenham as características desejadas, nas adegas, para produzir os vinhos de talha, os espaços são simples, compostos apenas com as talhas e os utensílios vinários, modernos e antigos, que servem na produção e como decoração dos espaços. A maior parte são construções em taipa ou tijolo de burro caiado. O formato é quase sempre retangular. O piso central mais baixo, revestido de ladrilho ou tijolo de burro, onde é construída a dorna ou ladrão, uma espécie de caixa construída em alvenaria ou uma talha enterrada que tem, como função, receber o vinho derramado, em caso de rebentamento de alguma talha durante a fermentação. O espaço central é guarnecido à volta por um patim, onde são colocadas as talhas. O patim com uma altura média de 0,25 m terá de largura, metade da medida do perímetro do bojo (barriga) da talha, o suficiente para que a talha fique bem apoiada. A função do patim é elevar a talha para um plano superior ao piso central, de forma que se possam colocar os alguidares para aparar o vinho quando chega a altura de abrir as talhas. A construção e o local procuram sempre garantir uma climatização natural, uma adega fresca. Por isso, a maioria das que encontramos na Vidigueira e Vila de Frades, são mais fundas em relação aos outros espaços da casa ou à rua. Têm poucas aberturas, ou quando existem, são de pequenas dimensões e quase sempre voltadas a norte para garantir menor luminosidade e maior frescura proporcionada pelos ventos vindos dessa direção. As talhas No processo de produção dos vinhos, a par do saber e da experiência dos adegueiros, as vasilhas de barro, as talhas, os potes, os tarecos, como por aqui chamam, com maior ou menor capacidade, presentes em todas as adegas, são as grandes promotoras do processo. É dentro delas que as uvas encontram o ambiente propício para se transformarem em vinho. Elas são responsáveis por grande parte do resultado final da produção. Todas diferentes por serem feitas manualmente, por talheiros, fora da roda, em arcos sobrepostos, batidos com uma palmatória, com barro mais ou menos poroso. Bojudas, com uma boca larga para entrada da uva e um orifício, 30 cm acima da base, tapado com uma rolha de cortiça até à altura de colocar o batoque e a torneira donde sairá o vinho, pesgadas com pez louro (resina natural extraída do pinheiro) no interior, de durabilidade e fácil manutenção, são como as “mães”, que criam filhos. Com os mesmos princípios, mas, com resultados imprevisíveis e diferentes. Cada talha gera um vinho diferente, no sabor, na cor e na personalidade. O número e a capacidade das talhas em cada adega é variável, consoante o tamanho da adega, as posses do proprietário e o propósito da produção, se é apenas para autoconsumo e partilha, se para comercializar. Segundo o inquérito de 2018-2019 no conjunto das 64 adegas identificadas na Vidigueira, há cerca de 700 talhas e potes de barro com capacidades entre os 100 e os 2000 litros e altura entre 1,20 m e os 2,00 m. Muitas com datas de produção dos séculos XVII a XX, provenientes dos principais centros oleiros do Alentejo: Campo Maior, Reguengos, Aldeia do Mato, atual S. Pedro do Corval. No caso dos potes, a maioria são provenientes das olarias de Beringel, S. Pedro do Corval e dos oleiros locais, hoje inexistentes no concelho. Muitos dos exemplares têm inscritas marcas de fabrico, sejam elas, um motivo decorativo, a data, o nome do oleiro, a localidade da olaria que comprovam a sua utilização multisecular. Os utensílios Na produção dos vinhos de talha, além das vinhas, das adegas, da qualidade da uva, das talhas e do “saber-fazer”, há utensílios e elementos construtivos indispensáveis ao processo. Alguns dos utensílios presentes nas adegas deixaram de ser usados, fruto da modernização dos equipamentos, sobretudo de desengace e trasfega de mostos para as talhas. Esta evolução em nada veio desvirtuar a essência do processo de vinificação, pelo contrário, veio facilitar o trabalho de esmagamento e desengace das uvas. Assim, o moinho manual, a prensa, a mesa de ripanço, usados para desengaçar, obter os mostos e espremer as balsas, foram substituídos pelo moinho elétrico, ao qual se ligam as mangueiras para trasfegar o mosto diretamente para as talhas. As mangueiras vieram substituir a escudela e o caneco. Com o caneco aparava-se o mosto do moinho para o transportar para as talhas. Com a escudela apanhava-se o resto do mosto que caía no chão e enchiam-se os canecos. A caixa de vindima deixou de ser usada, porque os produtores de uva deixaram de a vender diretamente às adegas. Como em todas as “artes”, podem adotar-se novas práticas, novos instrumentos de trabalho que facilitem algumas tarefas. Foi o que aconteceu também na produção do vinho de talha, criaram-se novos circuitos para obtenção da uva, novos equipamentos, mas não se alterou a forma de fazer o vinho. Atualmente na “mobília” das adegas encontramos vários utensílios ligados à vinha, modernos e antigos, em uso ou apenas como elementos decorativos, consoante as adega e as posses dos proprietários. Usados na Vinha/Vindima Caixa de vindima: caixa de madeira que se usava antigamente para pesar a uva que se vendia às adegas; Cesta/Cavanejo: recipiente de vime que antigamente se usava para recolher a uva durante a vindima; Podão: ferramenta que se usava antigamente para podar as videiras; Roçadora: ferramenta que se usava antigamente para retirar os rebentos da videira durante a poda; Tesoura: ferramenta usada na vindima para cortar o cacho de uvas; Usados na Produção/Prova/Conservação do Vinho Alguidar: recipiente de barro ou plástico usado para colocar debaixo da torneira para receber o vinho que escorre da talha; Batoque: rolha de cortiça colocada no orifício existente na parte inferior da talha de forma a selá-la até á abertura; Burra: escadote em madeira utilizado para aceder ao cimo das talhas durante os processos de remontagem das massas e de trasfega do vinho; Caixa de recolha de mosto: caixa usada para pôr por baixo da mesa de ripanço para recolha do mosto Caldeirão de atesto: recipiente com furos na base usado para fazer o atesto do vinho na talha de forma suave; Caneco: recipiente de metal usado para transportar o mosto do moinho ou da caixa de ripanço para dentro das talhas, ou ainda, para trasfega de vinho entre talhas; Casse: utensílio em forma de concha utilizada para retirar as massas do fundo das talhas ou durante a trasfega do vinho; Copos - copos pequenos para as provas dos vinhos. Enxofradeira: utensílio usado para aspergir o enxofre no interior da talha para desinfeção antes dos mostos serem colocados para fermentação; Escudela: utensílio usado para encher o caneco com os mostos ou com massas que foram retiradas da talha, ou ainda, para encher garrafões e outras vasilhas de grande volume com vinho; Funil de atesto: utensílio usado para fazer atesto e permitir a distribuição uniforme do vinho do atesto na talha; Ganchorra: espécie de ancinho usado para puxar a uva dos atrelados quando vem da vinha a granel; Garrafão: vasilha de vidro, ou plástico, usada para guardar e transportar o vinho; Jarros – recipientes de barro ou vidro para servir os vinhos nas adegas; Junça: planta silvestre que depois de seca serve para envolver a parte da torneira que entra no batoque e vedar; Ladrão: caixa de alvenaria ou talha enterrada no chão com o propósito de recolher e aproveitar o mosto no caso de alguma talha se partir/rebentar durante a fermentação; Lagar de pisa: tanque em alvenaria onde se pisava/esmagava as uvas com os pés; Maço: espécie de martelo de madeira usado para auxiliar a colocação da torneira no batoque previamente perfurado com o trado; Mesa de ripanço: mesa feita de madeira com tampo em ripas distanciadas com pequenos intervalos entre as elas, usada para desengaçar (separar os bagos dos pedúnculos) as uvas Moinho elétrico: equipamento usado para esmagar e desengaçar as uvas; Moinho manual: equipamento manual usado para esmagar e desengaçar as uvas; Prensa: equipamento utilizado para esmagar as massas de forma a espremer o resto do vinho das partes sólidas; Rodo: utensílio de madeira em forma de T utilizada na remontagem do mosto dentro das talhas; Serapilheira: pano de serapilheira que se humedece com água para colocar em volta das talhas para arrefecerem durante o processo de fermentação; Talha: Vasilha de barro, usada para receber o mosto para fermentar até se transformar em vinho; Tampa líquida: camada de azeite colocada sobre o vinho na talha para que não oxide; Tampa sólida: tampa de madeira ou cortiça usada para fechar as talhas depois de terminada a fermentação para evitar a oxidação dos vinhos; Trado: ferramenta usada para perfurar o batoque e abrir o orifício onde se coloca a torneira; Torneira: peça de madeira que se coloca no batoque para retirar o vinho da talha para o alguidar; Vindima Com todas as condições reunidas, vinha, adega, talhas e utensílios para fazer os vinhos, a vindima marca o início da produção. A colheita da uva movimenta “toda” a comunidade. Em meados de agosto, os produtores preparam a vindima e as adegas. É altura de lavar as adegas, verificar a impermeabilização, lavar e desinfetar as talhas, arranjar meios de transporte, organizar os grupos de vindimadores e recolher as uvas. Na vindima destinada à produção dos vinhos de talha, procura-se respeitar que a colheita ocorra de manhã e o mais cedo possível. A uva é toda colhida à mão. O produtor do vinho é quem providencia o transporte e as vasilhas necessárias para a recolher. Dentro do espírito de entreajuda, organiza-se um grupo para “apanhar a uva”, composto por familiares e amigos, raramente com pagamento de salário, apenas nos casos em que se produzem maiores quantidades de vinho com objetivos comerciais. Combina-se o dia e o local a vindimar. Na vinha o produtor escolhe e calcula a quantidade de uva necessária para as talhas que quer encher. A uva é colhida para dentro das caixas e baldes de plástico, em substituição das antigas cestas de vime, ou então, despejada a granel em carrinhas ou atrelados para transportar até á adega. Em regra, o grupo que vindima também leva a uva até à adega, ajuda a desengaçar e a colocar o mosto nas talhas. Depois de concluído todo o trabalho da vindima e já com os mostos nas talhas, a recompensa chega com a “adiafa” (convívio que se organiza para assinalar que se terminou um trabalho). Marca-se um dia, faz-se o petisco, junta-se o grupo da vindima para conviver à volta da mesa. No petisco não faltam os produtos da gastronomia regional. À comida tradicional de tacho, junta-se o pão, azeitonas, queijo, chouriços e naturalmente, o vinho e o cante alentejano. Processo de produção Terminada a vindima começa a segunda fase do processo na adega. É altura de pôr em prática todo o saber-fazer, passado de geração em geração, e a experiência acumulada na produção dos vinhos de talha. Muitos adegueiros nem sempre usam todas as talhas da adega. Antes da vindima decidem as que vão encher naquele ano e os vinhos que querem fazer, brancos, tintos ou “petroleiros”. Muitas vezes isto acontece por falta de uva, outras porque o processo é trabalhoso e não têm condições físicas para cuidar de todas as talhas se estiverem cheias de mosto. Situação que acontece menos com os produtores que têm adegas mais pequenas, muitas delas com duas ou três talhas, com uma produção mais regular, onde apenas é preciso decidir se o vinho a fazer é branco, tinto ou “petroleiro”, em função das uvas que têm ou que compraram. A uva escolhida na vinha, nas quantidades calculadas para encher as talhas, é encaminhada para a adega nas caixas, ou a granel, assim que acaba de ser colhida. O transporte faz-se com cuidado para que a uva não se esmague muito e perca sumo. O vinho faz-se no mesmo dia em que se vindima. Quando a uva chega à adega, o produtor já tem as talhas que vai usar desinfetadas para receber os mostos, o moinho e as mangueiras devidamente lavados e prontos para o desengace. Os homens vão descarregando as uvas, diretamente para dentro do moinho, em pequenas quantidades. Se a uva vier a granel, puxa-se de forma delicada, com o auxílio da ganchorra (espécie de ancinho) para os baldes ou caixas. Depois, à medida que o moinho vai moendo, (estes moinhos esmagam a uva sem a triturar) retiram-se os engaços maiores e o mosto, películas, peles e grainhas, vão sendo trasfegados, através das mangueiras ligadas ao moinho, para dentro das talha até atingir a altura certa. A talha não pode ficar cheia até acima para evitar que transborde durante a fermentação. Por isso, quando faltar a altura correspondente à medida do antebraço, para atingir o bordo da boca da talha, a quantidade está certa. Atualmente, para desengaçar, usa-se o moinho mecânico. No entanto, ainda há quem use a mesa de ripanço ou o moinho manual. A mesa feita de madeira tem o tampo em ripas, com pequenos intervalos entre elas. As uvas colocadas sobre o tampo são esmagadas e desengaçadas. O mosto e películas escorrem por entre as ripas para uma caixa que se coloca debaixo da mesa. Daqui é transferido com um caneco, espécie de cântaro de metal, conjuntamente com alguns engaços mais pequenos para dentro das talhas. Quanto ao moinho manual, ainda há quem o utilize, o processo de esmagamento é semelhante ao do moinho elétrico. Na recolha do mosto usa-se o mesmo processo que na mesa de ripanço. Antigamente, nalgumas adegas havia lagar/tanque de pisa, onde a uva era esmagada. Neste caso o mosto era recolhido com a escudela para o caneco para transportar para as talhas. Esta tradição perdeu-se com o uso do moinho elétrico. Quando termina o esmagamento e o desengace, todos os utensílios usados, o exterior das talhas e o interior da adega, são lavados. A higienização dos espaços e utensílios é fundamental para evitar as doenças nos vinhos. Com o mosto dentro das talhas começa a fermentação por ação das leveduras naturais, beneficiada pelo contacto com as massas. Um processo que, normalmente, acontece nas primeiras duas semanas. Este processo bastante complexo depende de muitos fatores, como a flora microbiana presente nas uvas, as castas utilizadas, os fatores climáticos e a presença de leveduras nos processos da adega ou mesmo nos recipientes. Nesta fase, e pela experiência, os adegueiros conseguem identificar as influências destes fatores e controlar a sua ação. Por exemplo, se estiver muito calor, durante a fermentação, as talhas são molhadas, por fora com água, ou então, envolvem-se com panos de serapilheira humedecidos para as arrefecer. Se as leveduras naturais só por si não permitirem uma fermentação eficaz, fazem a correção do mosto, com pequenas quantidades de ácido tartárico, calculadas em função da quantidade do mosto existente na talha. Têm que manter a adega fresca e a temperatura da fermentação controlada. Se por acaso alguma talha rebentar, o mosto vai para o ladrão/dorna onde é recolhido e recolocado em nova talha. A fermentação não pode parar. Se isso acontecer o vinho estraga-se. Durante este período, o cuidado com os vinhos é diário e o adegueiro tem como tarefa, duas vezes por dia, de manhã e ao final do dia, fazer a remontagem (mexer) das massas que estão dentro das talhas. A manta ou chapéu, camada formada pelas películas das uvas que sobem à superfície das talhas, precisa de ser mergulhada. Nesta tarefa, o adegueiro utiliza a burra (escadote de madeira) que coloca junto da talha e sobe até à altura de poder, com um rodo de madeira, com cabo da altura da talha, mexê-la até ao fundo. O objetivo desta operação é empurrar a manta para que se misture com o líquido. Esta rotina repete-se até que termine a fermentação. Sempre que se acaba de mexer o vinho, o bordo da talha é bem limpo e o rodo lavado para poder ser utilizado novamente. Normalmente, ao final de duas semanas, o sinal de que a fermentação está a terminar manifesta-se com a subida de algumas grainhas até à superfície da talha. A manta ou chapéu cai, ou seja, a quantidade de películas que, durante a fermentação, subia até à boca, vai para o fundo da talha, onde se deposita. Estas massas, a que os adegueiros chamam balsa ou mãe, servem de filtro natural para afinar o vinho e ficam na talha até que seja todo retirado. Depois da fermentação o vinho “fica em sossego” na mãe, até completar mais ou menos 40 dias dentro da talha, para que fique completamente “cozido”. Durante esta fase o adegueiro vai provando o vinho. Retira por cima da talha, com um copo, pequenas quantidades de vinho e prova. Pelo sabor e cheiro, vai percebendo se o processo está a correr bem. Para saber o grau alcoólico, os açúcares ou se precisa de fazer alguma correção, utiliza o pesa mostos e, nalguns casos, sobretudo quem produz para comercializar, manda fazer análises ao vinho, para acautelar que todo o trabalho e despesa com as uvas não se perca. Antes das provas dos vinhos novos, três ou quatro dias antes, é o momento da espectativa de colocar a torneira na talha que se quer abrir. Com um trado perfura-se o batoque. A torneira, isolada com junça, encaixa-se no batoque batendo levemente com o maço de madeira de maneira que fique firme. Põe-se um alguidar de barro (ou plástico) por baixo da torneira e põe-se o vinho a correr. Para afinar o vinho, tira-se por baixo pela torneira e volta-se a pôr na talha por cima. Repete-se esta operação de trasfega várias vezes para que o vinho passe pela mãe e começar a ficar clarinho, no caso dos brancos, ou límpidos, no caso dos petroleiros e tintos e melhore com o arejamento e filtragem a que fica sujeito com este processo. À medida que o vinho vai sendo retirado para consumo vai baixando o nível na talha e a partir de certa altura começa a oxidar. Para evitar a perda das características pela oxidação, as talhas são atestadas com vinho feito na mesma altura, mas num pote mais pequeno para esse propósito. Para atestar, ou seja, encher mais a talha de vinho coloca-se uma porção do vinho feito para atesto pela boca da talha. Para misturar bem o vinho do atesto com o que existe na talha repete-se operação de tirar o vinho pela torneira e voltar a colocar na talha por cima. Quando a talha está quase vazia, retira-se o resto do vinho. A mãe ou vai para outra talha ou é descartada. Antigamente aproveitava-se todo o vinho das balsas, com a esprema. Depois de retiradas, as balsas eram colocadas na prensa para retirar o resto do vinho que continha. As balsas eram, em seguida, destiladas para obtenção de aguardente que era utilizada para aguardentar o vinho. Hoje, embora as prensas ainda existam em muitas adegas, já não se utilizam e as balsas são descartadas ainda com restos de vinho. Não há um tempo definido para retirar o vinho das talhas. A época dos vinhos de talha começa em meados de novembro e vai até à Pascoa, mas fica nas talhas, com a balsa ou a mãe até que o adegueiro considere adequado. Também aqui o saber-fazer e a experiência são determinantes para definir a altura certa de passar os vinhos a limpo, ou seja, retirá-lo da mãe e armazenar noutro local em que se conserve com qualidade. Antigamente os vinhos eram passados a limpo e depois depositados em talhas. Para evitar que se estragassem pela oxidação, cobriam-se com azeite, a que se chamava tampa líquida, ou então a boca da talha era coberta com uma tampa de madeira ou cortiça, isolada com cera de abelha. Atualmente o vinho é engarrafado, acondicionado em garrafões ou “bag-in-box”, seja para guardar ou vender. Nos últimos anos, fruto de toda a divulgação deste património e da possibilidade de ser reconhecido como Património Cultural Imaterial, a procura aumentou e os maiores produtores de vinho começam a ter clientes certos, que todos os anos vêm comprar os vinhos novos. Hoje em dia o vinho de talha começa a ser encarado como um produto potenciador de desenvolvimento económico destas comunidades. Por esta razão, alguns produtores sobretudo, os mais novos, já começaram a trilhar caminho nesse sentido. Retomaram tradições familiares, criaram estruturas de negócio e engarrafam vinho de talha para comercializar, em pouca quantidade é certo, à venda noutros locais do país para que possa ser experimentado. Com os vinhos prontos em novembro tem inicio um novo ciclo: as provas e as vivências comunitárias em torno do vinho novo. As adegas passam a exercer a segunda função: locais de encontro e convívio, alimentando hábitos comunitários quase tão antigos como fazer os vinhos. O convívio Se a produção dos vinhos de talha sobreviveu neste concelho por questões relacionadas com apego às tradições, o convívio e a partilha que se gera em torno destes vinhos não constituem aspetos menos importantes. Muitos dos produtores do concelho quando inquiridos, confirmaram que uma das razões pelas quais continuaram a produzir foi, precisamente, terem a possibilidade de fazer vinho para beber e conviver com os amigos, dar e repartir com a família. Nestes convívios combinados à hora, sem formalismos, espontâneos, há sempre o petisco, a conversa, as modas do cante para animar o grupo de convivas. Este espírito de ir para adega provar o vinho, de levar o petisco (pão, fruta, queijo etc.) para partilhar e acompanhar a prova, manteve-se, mesmo quando o grupo de produtores era muito reduzido. Estar na adega, ouvir correr o vinho, apará-lo da talha com um pequeno copo para se provar, apenas é possível em convívio no ambiente da adega e isso atrai quem visita o concelho da Vidigueira. Atualmente os vinhos de talha começam a ser conhecidos. As particularidades do processo permitem a redescoberta e a valorização das tradições, das motivações, da vontade de fazer, do saber-fazer que alimentaram ao longo dos séculos a produção. A preservação deste património imaterial no concelho permitiu, ainda, proteger outras expressões do património das comunidades, indissociáveis do processo, representadas pelas vinhas, pelas adegas, pelas talhas e pelos demais utensílios vinários, bem como o convívio. A preservação e valorização deste património começa a ser encarada, por pequenos e grandes produtores, como uma aposta a fazer no futuro destas comunidades. O vinho de talha pode ser um fator importante no desenvolvimento económico da região. Ao mesmo tempo, com o aumento do número de visitantes que procura novas experiências à volta do vinho de talha, por ser diferente, emblemático, com uma narrativa própria, interessados em conhecê-lo, em participar do convívio nas adegas, nas provas, nos petiscos, no cante, tem motivado as comunidades a valorizar o saber fazer do vinhos de talha, um património que poderá reforçar, ainda mais, a sua identidade cultural.
  • Manifestações associadas:
    A propósito das manifestações associadas ao vinho de talha, pode dizer-se, sem exagero, que “provar” o vinho novo na Vidigueira é quase tão antigo como produzi-lo por este método. Se em todas as fases do processo, da vinha à adega, têm como motivação o apego às tradições, a possibilidade de partilhar e conviver com familiares e amigos à volta do vinho foi a motivação que mais influenciou a vontade de produzir e que mais se destaca nas manifestações associadas à produção. Dentro deste espírito de partilha, todos os anos a partir de meados de novembro, com os vinhos novos já feitos, começam as provas. Sente-se o cheiro dos petiscos nas ruas. O vinho novo é aparado da talha para compor a mesa dos comensais. Antigamente este ritual acontecia quase exclusivamente entre membros da comunidade. Cada produtor convidava um grupo para dar a provar vinho. A intenção de partilhar permitia ao mesmo tempo recolher opinião dos convivas sobre o vinho. Cada um dos convidados levava qualquer coisa para comer e partilhar: pão, linguiça para assar, bacalhau seco, peixe frito, azeitonas, fruta para o petisco. As críticas e elogios de quem o provava serviam de barómetro para avaliar a habilidade do anfitrião para fazer o vinho. Esta tradição manteve-se mesmo quando o número de produtores era reduzido. Lentamente, pelo aumento da procura dos vinhos de talha, as comunidades começaram a receber visitantes, a quem dão a provar os vinhos, com algum orgulho e satisfação em poder partilhar um vinho genuíno, feito “à antiga”. No caso dos produtores maiores as provas começam já a criar oportunidades de negócio, pois, nestes encontros, vendem vinho aos visitantes. Perante a nova abordagem, ao vinho de talha, o Município de Vidigueira, as Juntas de Freguesia, Associações Locais e alguns produtores particulares começaram a organizar feiras e programas. Alguns, como é o caso das “Festas Báquicas” promovidas pela Associação de Desenvolvimento Local Vitifrades, têm já longa tradição nas provas e no convívio à volta dos vinhos de talha envolvendo as adegas dos produtores. O convívio mobiliza a comunidade a partir de meados de novembro e, nesta época, é constante e dura enquanto houver vinho nas talhas. Este motivo é mais do que suficiente para reunir amigos, familiares, convivas e confraternizar, em manifestações tão antigas na comunidade como o próprio vinho. A abertura das talhas A Abertura das talhas é outra das manifestações associadas ao vinho de talha e o primeiro passo no processo das provas que decorrem a partir de meados de novembro, num ritual tão antigo como o próprio processo. Não se conhece por aqui outra forma de retirar o vinho das talhas. Colocar a torneira no batoque marca o início das provas. É o momento da expetativa de despertar todos os sentidos, como diz o Professor Arlindo Ruivo: “de se conhecer, apreciar e comentar o resultado da produção do ano e de dar a provar os vinhos nos copos pequenos tão característicos das adegas da região.” Manda a tradição que o produtor convide amigos para dar a provar o vinho no dia da abertura de uma talha. Normalmente, do grupo faz parte quem participou na vindima, quem ajudou durante o processo ou nalguma tarefa para que o vinho se fizesse. Nestes convívios à volta do vinho e da mesa não faltam o petisco e o cante, alternados com as conversas sobre as dificuldades do processo e resultado dos vinhos, o paladar, a cor, a graduação alcoólica. Os comentários sobre o vinho fazem a publicidade junto da comunidade, são os comensais que divulgam e promovem, com boa ou má nota, os vinhos que provam. Há alguns anos convencionou-se que a abertura das talhas tinha lugar no dia 11 de novembro, como diz o adágio: “no dia de S. Martinho vai à adega e prova o vinho”. Por isso, nesse dia, na Vidigueira e Vila de Frades, alguns produtores abrem pelo menos uma talha para as provas. Entre talhas e petiscos Em 2019 o Município de Vidigueira em colaboração com a Junta de Freguesia de Vila de Frades, começou a organizar um programa de dinamização para divulgar a produção dos vinhos de talha e sensibilizar os produtores para a importância do trabalho que desenvolvem na preservação deste património cultural. O programa designado por “Entre Talhas e Petiscos”, decorre entre novembro e fevereiro e inclui visitas às adegas, provas de vinhos com o objetivo de reunir á volta da mesa, em convívio, grupos de amigos e familiares para provar o vinho de talha, partilhar petiscos locais, dentro do espírito da adega. Feirinha de S. Martinho Feirinha de artesanato promovida pela Junta de Freguesia de Vila de Frades, com a primeira edição em 2018, para promover o artesanato da região e em particular o vinho de talha, produto dado à prova aos visitantes. Vitifrades A Associação de Desenvolvimento Local Vitifrades foi criada em 1998 com objetivo de preservar e garantir a continuidade da produção dos vinhos de talha. A partir daí todos os anos organiza as “Festas Báquicas”, um evento conhecido por VITIFRADES, que decorre no segundo fim-de-semana de dezembro, em Vila de Frades. Este evento, com mais de 20 anos, integra um concurso de vinhos e, atrai a Vila de Frades umas largas centenas de visitantes. Quem por aqui passa nesses dias, procura as provas dos vinhos e o convívio nas adegas. Os grupos formam-se naturalmente á volta dos petiscos, do vinho de talha e do cante. Para além de ser um meio de divulgação privilegiado, pela experiência que cada visitante leva daqui, este evento tem permitido aos produtores a promoção dos vinhos, o reconhecimento do saber fazer e da “arte” de bem receber, tão característicos e bem representativos da identidade cultural da comunidade. Vidigueira Vinho Dentro das iniciativas promovidas para divulgação da marca Vidigueira, o Município organiza desde 2015 uma feira alusiva ao vinho. Nesta feira, que se realiza pela altura da Páscoa, para além dos vinhos modernos provenientes das diferentes produtores do concelho e de outros pontos do Alentejo, o vinho de talha tem sempre um lugar de destaque, com a participação de produtores convidados para dar a provar os vinhos. A promoção do vinho de talha neste evento tem como objetivo a divulgação de um produto tradicional e a valorização do património identitário destas comunidades.
  • Contexto transmissão:
    Estado de transmissão activo
    Descrição: A produção dos vinhos de talha está ativa no concelho de Vidigueira há pelo menos 2000 anos. Este saber-fazer foi transmitido oralmente de geração em geração. Entre o início da década de 60 e final da década de 90 do século XX, a produção dos vinhos de talha passou por um período de retrocesso, mas, nos últimos 20 anos tem vindo a recuperar gradualmente. Atualmente conta com um grupo com cerca de 64 produtores identificados no inquérito de 2018-2019, número que pode variar, em função da vontade de fazer os vinhos, por falta de uva, ou por outra razão pontual, mas, não põe em causa produção anual. Quanto à transmissão dos conhecimentos, é preciso ter em conta que para aprender a produzir os vinhos é necessário reunir um conjunto de condições: vinha ou onde comprar uva, uma adega, utensílios vinários e vontade de aprender pois, trata-se de um trabalho manual, moroso, por agora pouco rentável, condições que de certa forma limitam a transmissão dos conhecimentos. Por essas razões, para cerca de metade dos produtores do concelho, a transmissão ocorreu em contexto familiar, numa passagem de conhecimentos intergeracional, quase sempre dentro de uma estrutura vinícola preexistente. Para os restantes produtores, foi a curiosidade e o gosto pela tradição que levou à aprendizagem do processo. Nestes casos, os conhecimentos foram apreendidos autonomamente pela convivência com amigos adegueiros. Para poderem experimentar criaram as suas próprias adegas e as condições necessárias para fazer vinho, ano após ano aperfeiçoaram o uso das técnicas, tendo como motivação o saber-fazer o seu próprio vinho. A retoma da produção e a crescente procura dos vinhos de talha estão a promover o interesse em aprender, já com objetivos mais centrados nos proveitos económicos que daí possam advir. Tal situação está a acontecer também nas grandes adegas instaladas no concelho e na região que, nalguns casos, já estão a trilhar os caminhos da produção do vinho de talha, com o mesmo método, mais direcionado para engarrafamento, com garantia da qualidade, longevidade na conservação e a possibilidade de poderem ser apreciados a nível nacional e internacional. Este interesse pela produção tradicional do vinho de talha é, sem dúvida, uma mais-valia para a transmissão dos conhecimentos, preservação e salvaguarda de um saber-fazer tão antigo, que pode vir a constituir-se como um setor importante no desenvolvimento económico, turístico e cultural das comunidades da Vidigueira e do Alentejo.
    Data: 2022-09-23
    Modo de transmissão oral
    Idioma(s): Português
    Agente(s) de transmissão: Produtores de vinho de talha
  • Origem / Historial:
    Tal como noutras regiões do Mediterrâneo e do Cáucaso a cultura dos vinhos em talhas de barro ou em qvevri quase foi votada ao abandono. Este tipo de produção ficou confinada a algumas produções familiares e furtivas, como acontece na Geórgia, no Friuli, em Itália, e na Eslovénia. Os vinhos macerados foram, em meados do século XX, ofuscados pelos avanços das novas tecnologias trazidas da Alemanha e da França na década de 60 e ainda pelo sistema de cooperativas, instaurado no Alentejo na década de 50. Esta evolução no mundo da produção dos vinhos praticamente eliminou as talhas das adegas dos principais produtores da região. Afortunadamente, as famílias, as tabernas alentejanas, a vontade de muitos vitivinicultores proprietários de pequenas vinhas de se manterem fiéis às tradições de fazerem os seus próprios vinhos, salvaram um património inestimável, uma mais-valia para o Alentejo e para o país, num momento de retorno às tradições e à diferenciação no cenário enológico mundial. A produção do vinho de talha responde a uma geografia histórica e cultural coincidente, em Portugal, com a região do Alentejo, onde se manteve de forma ininterrupta, pelo menos, desde a época romana. Sobre a produção e o método, não há muitas fontes históricas que os documentem, com pormenores e evidências da continuidade em todas as épocas. Contudo a tradição oral, a memória coletiva, o património constituído pelas adegas, talhas, utensílios e hábitos comunitários associados à cultura do vinho, evidenciam uma produção multisecular ainda ativa nalguns concelhos alentejanos. Quanto ao uso deste método de produção no Alentejo, a literatura agronómica setecentista e oitocentista, pela crítica acérrima que fez aos vinhos de talha, acaba por nos dar informação, acerca da continuidade, meios envolvidos e, de certa forma, por clarificar a importância da produção para a região Alentejo quando evidencia a resistência ao abandono de tradições ancestrais de práticas comunitárias de aproveitamento dos recursos vitícolas existentes. Um dos críticos, talvez o mais conhecido, que mais informação nos deixou acerca do processo produtivo da região e do uso de talhas, foi João Ignácio Ferreira Lapa. Nas suas críticas considerava este “… método de vinificação como um anacronismo histórico, uma sobrevivência do sistema romano”. Deixou clara a região abrangida e origem da tradição: “É adotado em Évora, assim como em todo o Alemtejo, o uso das talhas de barro, não só para as operações da vinagem, senão para guarda e conserva dos vinhos depois de feitos. Não existe memória da epocha em que este uso se introduziu no Alemtejo: bem fundadas conjecturas baseadas na figura destes vasos vinários, muito similhantes aos de que se serviam os romanos para idênticos fins, levam a crer que elle se introduzira na província desde o tempo da dominação romana. Por isso chamaremos ao systema da vinificação nas talhas, systema romano”. Quanto à produção procurou evidenciar as más condições de higiene das adegas, mas veio ao mesmo tempo confirmar o processo, que descreveu como: “O systema de ripar toda a uva, a incompleta pisa, a fermentação em talhas descobertas, o desaceio e até imundície da maior parte das adegas, muitas das quaes mais parecem cavallariças ou cortelhos, são defeitos gravíssimos que não deixam chegar os vinhos desta bella região ao grau de superioridade a que podiam aspirar”. Sobre o uso das talhas, não foi menos depreciativo António Augusto de Aguiar quando afirmou “…o uso das talhas diz-se que vem do tempo dos romanos, que mais dados às cousas da guerra do que às da indústria, tendo necessidade de crearem uma bebida, estabeleceram este processo selvagem, que apesar de passarem bastantes séculos, ainda existe no Alentejo”. No mesmo tom depreciativo citamos, ainda, mais algumas críticas de António Augusto de Aguiar que considerou: “A vynificação apresenta dois typos diversos. Um semelhante ao que está em curso no resto do paiz, é apenas seguido por alguns proprietários do Alto e Médio Tejo; e outro, que se afasta totalmente das práticas conhecidas e que é peculiar a esta província (…) Este segundo tipo de vinificação chega quasi a dar thema para um conto fantástico, cortado de episódios cómicos. Tem um symbolo que é a talha, e por este nome é conhecido”, ou ainda, “As talhas guardem-n’as como recordação dos tempos do obscurantismo oenologico, para, no futuro, as mostrarem, por curiosidade, às pessoas que visitem a província. Veneremol-as como relíquias, mas esqueçamol-as…”. Em contrapartida Fialho de Almeida, em “Estancias d’Arte e de Saudade”, na descrição da visita a uma adega, em Évora, destaca o uso da talha como um símbolo da tradição alentejana na produção do vinho “… a adega não põe tonneis, e guarda-se o vinho ainda no vasilhame tradicional do velho Alemtejo – explicando melhor, em talhas de barro pesgadas, das quaes multisecularmente tiveram monopólio as olarias de Reguengos e algumas villas mais. As talhas primitivas eram de formato pequeno, barrigudas, cómicas, côr de saragoça como frades gordos, e sem pescoço, apopléticas, de bocal curtíssimo, levando entre vinte e cinco e trinta almudes. As modernas, dobraram, e triplicaram mesmo de capacidade receptora, esvasando-se no gargalo e base, curiosamente, e rebentando até, na época da fermentação do mosto, com relativa galhardia….” Toda a crítica produzida naquela altura apontava como fatores de resistência às inovações enológicas adotadas noutras regiões: a persistência da herança cultural; a tradição dos centros oleiros como Reguengos de Monsaraz, antiga Aldeia de Mato (hoje S. Pedro do Corval), Campo Maior, ou ainda, os mais antigos (sec. XVII) Cuba, Vilalva, Serpa e Redondo, que fabricavam a maior parte do vasilhame para uso próprio e para outras povoações da região; a tradição de assegurar a produção do próprio vinho, com o tão apreciado e característico sabor do pez; o isolamento e interioridade da região do Alentejo com falta de madeiras disponíveis e de meios de comunicação e transporte. Apesar das críticas, a produção manteve-se por todo ao Alentejo, fizeram-se talhas durante quase dois mil anos, numa tradição oleira que terminou nas primeiras décadas do século XX. O vinho produzido nas talhas alimentava o comércio com outras regiões e o consumo local durante uns meses (novembro a março) pois, como refere o Professor Virgílio Loureiro, dizia-se entre as populações rurais do Alentejo que “enquanto houvesse vinho nas talhas nenhum alentejano bebia outro”, só depois se recorria à compra de vinhos de outras regiões, nomeadamente do Ribatejo. Para além disso, a produção contribuía para o rendimento familiar e continuava a animar os convívios nas comunidades. Os novos métodos de produção foram ganhando escala, as adegas cooperativas começaram a agregar os viticultores. Os produtores tinham onde vender as uvas e os vinhos com outra qualidade conquistaram os mercados. O abandono das talhas e das adegas tradicionais foi gradual a partir de meados do século XX. A produção com objetivos comerciais foi desaparecendo e desta tradição com as motivações antigas para fazer os vinhos resta, em todo o Alentejo, um grupo de produtores ativos, apenas em 12 concelhos alentejanos. Este grupo continua no cultivo das vinhas, na organização das vindimas, na construção e organização dos espaços das adegas, no uso das talhas, utensílios vinários e, naturalmente, na forma de produzir os vinhos de talha a evidenciar aspetos muito semelhantes ao método romano difundido na região há 2000 anos. Na Vidigueira, reconhecida por diversos autores como um centro vinhateiro importante pelas razões já explicadas na caracterização desenvolvida, a produção do vinho de talha encontra-se referenciada desde a época romana. Na Villa Romana de S. Cucufate, situada no concelho de Vidigueira, instalada no séc. I d. C. como centro de uma exploração agrícola, foram encontradas durante as escavações na zona dos lagares ou lagaretas do vinho grainhas de uvas e pedicelos, que evidenciam ter havido produção de vinho no local. A referência do Professor Jorge Alarcão “… em talhas se fazia e guardava o vinho na uilla romana de S. Cucufate…”, vem reforçar a ideia da existência da produção do vinho em talhas no local e, ao mesmo tempo, contribuir para a compreensão da preservação desta herança cultural romana na região. Também no estudo das ânforas vinárias usadas para transporte em S. Cucufate, realizado por Inês Vaz Pinto e Conceição Lopes veio comprovar que a produção do vinho, na fase de instalação da Villa, não era suficiente para o consumo. No entanto, no estudo as citações de F. Mayet e A. Schmitt, confirmam que a partir de meados do séc. I d.C. a realidade passou a ser diferente: “…o diminuto número de ânforas vinárias em S. Cucufate representa”(…) “la suffisance de la prodution locale et sans doute sa qualité”, ou seja, o reduzido número de ânforas vinárias de transporte de vinho aponta para uma produção local de vinho, com a qualidade e em quantidade suficiente para o consumo interno da Villa. Se durante a época medieval não nos é possível documentar a continuidade da produção, na época moderna podemos constatar a importância económica da produção dos vinhos na Vidigueira. Esta questão ficou bem expressa na fixação do rellego e no embargo dos forais, concedidos à Vila da Vidigueira e a Vila de Frades, em 1512 por D. Manuel I, que apenas se resolveu depois do donatário garantir que o vinho produzido nestas vilas seria devidamente tabelado e acautelado o período de venda que lhe garantisse o lucro máximo. No século XVII, na Descrição do Reino de Portugal, de Duarte Nunez de Leão, publicada em 1610 encontramos uma referência à região da Vidigueira: “….o mesmo nome tem outros muitos de Alentejo onde há vinhos muito finos, como são os brancos de Beja, os palhetes de Alvito, de Viana, de Vila de Frades, das Alcáçovas….” No início do século XVIII uma outra referência continua a demonstrar a importância da região vitivinícola da Vidigueira. O Padre António Carvalho da Costa, em 1708, na “Corografia Portuguesa” descreve a Vidigueira e Vila de Frades e, nos produtos, dá especial relevo ao vinho: Vidigueira “é abundante de vinhos”, Vila de Frades “É esta Vila abundante de excelentes vinhos”. No século XIX, a vinha e a produção dos vinhos no concelho era de tal forma importante que o consideravam um dos principais centros vinhateiros ao sul. As vinhas pelo valor da uva eram guardadas pelos vinheiros, nomeados em meados de julho até à vindima. O número de adegas era muito elevado, refira-se que, no livro de cobrança da décima de Vila de Frades no ano de 1834, foram cobrados impostos de 154 adegas e de 10 lagares de pisar uvas, declarados na localidade. A Vidigueira estava incluída no 14.º Centro Vinhateiro, definido por Ferreira Lapa como: “Cuba, Vidigueira, Vila de Frades, Vilalva – Grande região ainda do centro do Alemtejo, que está hoje fazendo grossa exportação de seus vinhos, mais delicados que os de Évora, não só para outros pontos da província, mas para Setúbal e Lisboa”. A produção continuava a ser da forma tradicional nas talhas, em adegas familiares, algumas de maior dimensão com objetivos comerciais. Na década de 40 do século XIX, começam a surgir pedidos de licenciamento camarário para “lojas de venda de vinho”, ou seja, as tabernas vieram juntar-se às adegas para a venda dos vinhos a copo e como locais de convívio. No final do séc. XIX, Gerardo A. Pery, na estatística agrícola do concelho, considerava a vinha como uma das culturas responsáveis pela fixação da população na Vidigueira e Vila de Frades, no entanto, com pouca rentabilidade e baixa produtividade resultantes “da grande área de vinhas velhas plantadas em terrenos pobres e já esgotados”. Em relação à produção dos vinhos, Gerardo Pery é muito esclarecedor sobre o processo usado no concelho de Vidigueira: “O pequeno proprietário que em geral não possuía mobília, nem vasilhame, nem casa própria para fabricar o vinho, vende a uva depois de vindimada, transportando-a á sua custa até á porta dos lagares, onde é pesada. Alguns, porém, apesar de não terem lagar, preferem fazer o vinho. O processo e os utensílios atingem então o último grau de simplicidade. Uma pequena ripadeira, um tino, ou dorna, um recipiente qualquer que receba a uva esbagoada e onde se lhe dê uma ligeira pisa, é o suficiente.” (…) “Uma casa ladrilhada, um patim de entrada serve de lagar. O mosto vai sendo lançado na talha de barro, juntamente com a balsa não espremida, levando os bagos quase inteiros. Ali fermentava o mosto mais ou menos demoradamente, revolvendo-se a balsa de tempos a tempos, fazendo-a mergulhar. Esta fermentação dura um, dois ou três meses; mas ordinariamente não se espera que ela termine, para se começar a consumir o vinho”. (…) “Salvo raras excepções, é este o processo na pequena indústria vinícola: mas apesar da imperfeição do processo, o vinho sai às vezes relativamente bom, graças a circunstâncias favoráveis, que o acaso proporcionou à vinificação”. (…) “Na grande indústria vinícola, assim como na mediana, o processo de vinificação assenta sobre as mesmas bases: desengace total, pisa ligeira de bica aberta, e fermentação nas talhas de barro; processo igual ao seguido na Cuba, e que já se acha descrito na respetiva Memória. Mas, assim como na Cuba havia a notar aperfeiçoamentos muito importantes em algumas das principais adegas, também há a especificar na Vidigueira e em Vila de Frades algumas adegas onde se empregam processos mais racionais” (…) “Citarei dois tipos de adega que diferem muito entre si. A Adega do Sr. Palha, grandiosa, com vasilhame de madeira e grandes lagares, é o tipo da adega moderna, seguindo todavia algumas práticas antigas, cuja utilidade a experiência local talvez confirme; a adega do Sr. Leitão, em Vila de Frades, é o tipo aperfeiçoado da adega antiga, com vasilhame de barro pesgado, lagariça, desengaçadeiras, etc., mas na qual o vinho é tratado com esmero e cuidados incessantes”. Esta realidade manteve-se e em 1930 a descrição do “Álbum Alentejano” referia: “Pouco pão aqui se semeia. São grandes vinhedos e olivais. Vinho e azeite é a riqueza da região….”. Mas ainda que a produção para autoconsumo mantivesse os mesmos contornos, a comercialização sofre alterações com a criação, em 1937, da Junta Nacional do Vinho, que sucedeu à Federação dos Vinicultores do Centro e Sul de Portugal, criada em 1933, com o objetivo de equilibrar a oferta e o escoamento, a evolução das produções e o armazenamento dos excedentes de vinhos. O maior controle na qualidade limitou o número de adegas autorizadas a produzir para comercializar como se comprovou numa investigação sobre as construções de taipa de Norberto Fialho, nas freguesias de Vidigueira e Vila de Frades, das 154 adegas declaradas na freguesia de Vila de Frades em 1834, passaram para 32 até 1940, sendo a maioria de pequena dimensão com fabrico artesanal e armazenagem em talhas de barro. Durante o Estado Novo, com a campanha do trigo, a área do centro vinhateiro de que faziam parte o concelho de Vidigueira e Cuba foi reduzida a metade. No Inquérito Agrícola e Florestal do Concelho de Vidigueira, de 1951, apontava-se a necessidade de alargar novamente a área da vinha pelo menos para a existente no final do século XIX, referindo que: “Dá produções baixas, não há dúvida, mas os vinhos não são maus, têm tradição e, acima de tudo, a cultura tem uma alta função social”. A função social estava relacionada com a posse da vinha. Ter uma vinha concedia estatuto de proprietário, sinónimo de vida mais abastada, com reconhecimento na sociedade local. Por outro lado, na Vidigueira mandava a tradição que, ao salário, consoante os trabalhos e os patrões, acrescia uma medida de vinho, uma latinha, (um quarto de litro), uma labisa ou um copo de dez (dez centavos de vinho), a beber numa taberna ou em casa do patrão no momento do convívio depois do trabalho. Quanto á produção refere ainda o inquérito que era bastante repartida. Segundo a importância do vinicultor, ou seja, pela capacidade produtiva, eram designados como: pequenos produtores, cerca 35% do total, que produziam menos de 1000 litros; os médios produtores, cerca de 60%, produziam entre os 1000 e os 6000 litros e os grandes produtores, cerca de 5%, produziam mais de 6000 litros. Nesta altura grande parte da colheita da uva, cerca de 60%, era vendida aos grandes produtores, “fabricantes-armazenistas de vinho”, sendo os 40% restantes para consumo próprio. Os vinhos continuavam a ser fabricados pelos próprios vinicultores e armazenados nas talhas de barro, independentemente da quantidade produzida. O vinho para comercializar era vendido aos taberneiros locais e aos de Beja por terem boa aceitação. Contudo, devido ao processo de fabrico, geravam baixo rendimento e eram pouco concorrenciais. Com o objetivo de suprimir alguns dos problemas de produção e qualidade, surgiram, em meados do século XX, as Adegas Cooperativas, entre as quais a da Vidigueira, Cuba e Alvito, em 1960, sugestão já deixada no Inquérito de 1951. Inicialmente constituída por vinte e um sócios, dentro dos princípios fundamentais do cooperativismo, viria a dar um novo rumo á produção com o início da laboração três anos mais tarde em 1963. A fundação da Adega Cooperativa de Vidigueira, Cuba e Alvito, constituía um ponto de viragem na vitivinicultura da região da Vidigueira. Os pequenos produtores encorajados pela adega cooperativa a continuar a sua atividade, tinham agora a oportunidade de vender as suas uvas à entidade que os representava, de as ver transformadas por métodos mais modernos, obtendo como resultado um vinho de qualidade superior e, acima de tudo estável, com o escoamento assegurado e mais competitivo nos mercados. O vinho de talha que até aqui tinha uma função de autoconsumo e comercialização, passa a perder o interesse como produto de mercado. À medida que os vinhos da cooperativa começam a ser reconhecidos e a ganhar fama, os vinhos de talha perdem o interesse comercial. Nesta altura foram as tabernas, por terem o seu modelo de negócio, em parte, assente na produção do vinho de talha, que continuaram a produzir e a manter a tradição. Contudo há um abandono progressivo da produção do vinho de talha. Entre 1940 e 2008 no levantamento do registo predial, registados com a função de adega encontravam-se em Vila de Frades 48 e na Vidigueira 9 edifícios. A criação de espaços com uso de adegas para produção própria ou de armazenistas, produtores e comercializadores de vinhos, foi diminuindo comparativamente com os dados do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Mantiveram o registo do uso mas a maior parte deixou de ter atividade produtiva. Com o abandono da produção do vinho de talha, as adegas tradicionais perderam importância e foram abandonadas, bem como as talhas e os utensílios vinários, uma situação comum a outros concelhos alentejanos onde chegaram as adegas cooperativas e nas suas áreas de influência. Muitas das talhas fabricadas até às primeiras décadas o séc. XX, foram partidas ou deixadas ao abandono, apenas se continuaram a fabricar potes com capacidade até aos 300 litros para alimentar a pequena produção de vinho de talha para consumo próprio. Foi o que se passou na Vidigueira. No final da década de 90 do séc. XX havia no concelho, identificados cerca de cinco produtores que se mantiveram fiéis à tradição de produzir vinho de talha. As motivações assentavam sobretudo na vontade de fazer o vinho para consumo da casa, para partilhar e animar os convívios entre amigos na comunidade sem objetivos comerciais. Perante esta realidade, com uma tradição quase perdida, um grupo de amigos Vilafradenses resolveu então unir esforços com o objetivo de retomar a tradição de fazer os vinhos de talha, usando o saber dos poucos produtores que restavam. Para divulgar a intenção e sensibilizar a comunidade, organizaram em dezembro de 1998 uma mostra de vinhos a que chamaram as “1ªas Festas Báquicas”. Fundaram no mesmo ano a Associação de Desenvolvimento Local – Vitifrades ADL. A partir dessa altura, todos os anos, organizam no segundo fim-de-semana de dezembro as Festas Báquicas, mais conhecidas por VITIFRADES. A VITIFRADES, para além do convívio dentro do recinto onde decorre, inclui um concurso de vinhos de talha e uma rota pelas adegas particulares aderentes, que abrem as suas portas para dar a provar os vinhos novos produzidos nesse ano. A ideia inicial de mostrar meia dúzia de vinhos conta hoje com a participação de cerca 150 vinhos a concurso, entre brancos, tintos e petroleiros (palhetes). Cada produtor do concelho, ou dos concelhos limítrofes, pode apresentar os vinhos ao concurso. Inscrevem-se e, uma semana antes da VITIFRADES, são recolhidos os vinhos para serem apreciados por provadores entendidos em vinhos de talha. No último dia da VITIFRADES são entregues os prémios aos participantes, numa sessão pública, em função da classificação que lhes foi atribuída e por cada tipo de vinho que apresentou a concurso. O trabalho da Associação VITIFRADES veio incentivar a comunidade a retomar uma tradição praticamente perdida, com enorme sucesso na preservação dos conhecimentos associados à produção dos vinhos de talha. Dentro do espírito de retoma da tradição e da divulgação do vinho de talha em 2009, a VITIFRADES lançou no mercado o primeiro vinho de talha, comercializado em talhinhas de barro de 0,75 l. Esta ação serviu de estímulo para os produtores do concelho e um exemplo para o Alentejo na promoção deste património cultural. Com o mesmo objetivo, em 2011 e pela primeira vez a nível nacional, uma garrafa em forma de “Amphora” romana, um vinho de talha com o mesmo nome, viria a ser o primeiro “Vinho de Talha DOC Alentejo” certificado pela Comissão Vitivinícola Regional Alentejana. Todo o trabalho da associação VITIFRADES em parceira com as autarquias locais sensibilizou as comunidades para a importância deste património. Pouco a pouco nestas comunidades, as adegas, as talhas e os utensílios vinários começaram a ser recuperados. Houve um aumento na procura de talhas. Surgiu também a necessidade de voltar a fabricar estas vasilhas com técnicas antigas, tal como voltar a fazer a pesga com pez louro para impermeabilização. Por essa razão, um barrista da Vidigueira, com apoio do Município, está a fazer experiências para fabricar talhas numa tentativa de recuperar técnicas que se perderam há um século. O interesse pelo método aumentou e todo o saber-fazer e experiência dos produtores começou a ser valorizado e entendido como um património a proteger. Atualmente o concelho conta com um grupo de cerca de 64 produtores, identificados com a aplicação do inquérito de 2018-2019. Muitos recuperaram tradições familiares, adegas, talhas e utensílios já existentes, voltaram a usar os conhecimentos, a trocar experiências intergeracionais. As adegas encontram-se distribuídas nas localidades, nas hortas ou pequenas quintas como anexos das habitações ou como edifícios isolados, onde todos os anos se produzem os vinhos. Na essência o processo manteve-se inalterado ao longo dos séculos. Houve introdução do moinho mecânico, para o desengace, das mangueiras para a trasfega mas, o saber-fazer e os hábitos comunitários antigos continuam a estar presentes nas adegas tradicionais e a manter na comunidade a memória de uma longa tradição bem representativa da sua identidade cultural.
  • Direitos associados :
  • TipoCircunstânciaDetentor
    Consuetudinário O direito sobre esse património é consuetudinário pois, o modo específico como a tradição se mantém, pertence às comunidades, em particular aos produtores de vinho de talha. São detentores dos direitos relativos á produção do vinho de talha no concelho de Vidigueira os produtores.
  • Responsável pela documentação :
    Nome: Rosa Manuela Morais Trole Galante
    Função: Equipa: Rosa Manuela Morais Trole Galante (coordenação); Manuel Francisco Cunha Carvalho (fotografia); Joaquim José Louro Oliveira (grafismo); Carlos Nogueira (grafismo)
    Data: 2022-09-23
    Curriculum Vitae
  • Fundamentação do Processo : ver fundamentação do processo
Secretário de Estado da Cultura Direção-Geral do Património Cultural
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